quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Os pacíficos atores


Por Jânsen Leiros Jr.


“Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus."
                       Mateus 5:9 - JFA


9 O amor seja não fingido. Aborrecei o mal e apegai-vos ao bem. 10 Amai-vos cordialmente uns aos outros com amor fraternal, preferindo-vos em honra uns aos outros; 11 não sejais vagarosos no cuidado; sede fervorosos no espírito, servindo ao Senhor; 12 alegrai-vos na esperança, sede pacientes na tribulação, perseverai na oração; 13 acudi aos santos nas suas necessidades, exercei a hospitalidade;  

14 abençoai aos que vos perseguem; abençoai, e não amaldiçoeis; 15 alegrai-vos com os que se alegram; chorai com os que choram; 16 sede unânimes entre vós; não ambicioneis coisas altivas mas acomodai-vos às humildes; não sejais sábios aos vossos olhos; 17 a ninguém torneis mal por mal; procurai as coisas dignas, perante todos os homens. 18 Se for possível, quanto depender de vós, tende paz com todos os homens. 19 Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira de Deus, porque está escrito: Minha é a vingança, eu retribuirei, diz o Senhor. 20 Antes, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto amontoarás brasas de fogo sobre a sua cabeça. 21 Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem."
                       Romanos 12:9-21 - JFA

Calma, calma! Eu sei que falar em pacificação numa conjuntura mundial onde o confronto direto e o conflito armado estão na ordem o dia, soa piegas e totalmente fora de contexto. Eu sei que as guerras nossas de cada dia têm tomado de assalto os noticiários, nos envolvendo em um clima de tensão e atenção. Na sequência das bem-aventuranças, contudo, chegou a hora de falarmos da paz como característica daqueles que marcham a caminho do reino de Deus.

Sendo essa a sétima bem-aventurança, a paz parece não ser incluída aqui por acaso, pois ser limpo de coração (a bem-aventurança anterior) se apresenta como pré-condição para se buscar a paz[1], pois a sinceridade e a franqueza se mostram necessárias em um processo de reconciliação, ao mesmo tempo que é em paz que se suporta sem medo, a perseguição e as calúnias a que são submetidos aqueles que seguem a justiça de Deus. Sim, é importante dar destaque às duas vertentes da paz; pacificação e reconciliação. Dois contextos possíveis para um mesmo espírito pacificador.

Primeiro vamos ao que evita o conflito e a contenda, a quem convencionaremos chamar de pacificador. Alguns comentadores fazem alusão a uma provável estruturação do texto das bem-aventuranças, em que os pacificadores do verso nove estão ligados aos mansos do verso seis. Confesso que vejo com bons olhos essa probabilidade, dada a correlação coerente e de sentido aplicável, uma vez que os mansos optam invariavelmente pela paz, perseguindo sua manutenção não por covardia, mas por convicção de postura e viver harmonioso.

Nesse aspecto, a atitude nascida da mansidão não é aquela decorrente do temor pelo conflito em desvantagem de razão ou circunstância. Pelo contrário, o pacificador é aquele que tem a razão ao seu lado. Ele também possui a força necessária para subjulgar seu eventual oponente em um confronto direto, mas ainda assim ele busca insistentemente o caminho da paz, pelo espírito de mansidão e pela segurança que desfruta em Deus[2]. Ele não depende da luta para sentir-se sobrepujando-se a nada nem a ninguém.

O pacificador tem prazer na paz, ainda que esta custe abrir mão de direitos ou qualquer outra vantagem que lhe seja cabida. Mais tarde o apóstolo Paulo fará alusão a tal comportamento, ao sugerir que devemos sempre buscar a paz com todas as pessoas, além de sempre a promover preferivelmente, quando a nós nos couber tal opção. Afinal, Deus nos chamou à paz[3].

Já o aspecto de reconciliação, intrínseco ao espírito pacificador, está ligado ao papel resgatador que Jesus exerce reconciliando a humanidade com Deus; a sua justiça. A paz é uma obra divina e Deus é autor da paz e da reconciliação, afirmou John Stott apontando que somente Deus poderia cruzar o abismo que nos separava d'Ele[4], bem como somente Ele é capaz de unir povos e etnias inimigas, fazendo de tais um só povo; o seu povo, sua igreja. Não é sem razão que Jesus é chamado o Príncipe da Paz[5].

É importante ressaltar, sobretudo, que a paz não é o abandono barato de um conflito iminente ou desencorajador, ou mesmo uma rendição estratégica de quem teme o desfecho desfavorável e danoso, como já dissemos acima. A paz tem sim um custo, e alto, assim como custou alto preço a Jesus reconciliar a humanidade com Deus. Custou-lhe esvaziar-se de si mesmo[6], não colocando seus próprios interesses ou conveniências, por mais nobres que fossem, acima do plano redentor, reconciliador e pacificador de Deus. Jesus deu-se à paz, apesar de todo o preço que isso lhe custou.

Que o Senhor nos ensine não só a gozar de sua paz, nascida da esperança que temos n'Ele, mas a também e acima de tudo, promovermos a paz por onde quer que passemos ou vivamos, não só construindo um ambiente de sereno e sem conflito, mas também comunicando ao mundo a reconciliação de Deus com o mundo, por Cristo Jesus, a nossa Paz.

[1]  Hebreus 12:14
[2]  1 Pedro 2:23
[3]  1 Coríntios 7:15b; 1 Pedro 3:11
[4]  Efésios 2:11-17; Colossenses 1:19-20
[5]  Isaías 9:6
[6]  Filipenses 2:5-8

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Misericórdia; sentimento sempre bem-vindo


Por Jânsen Leiros Jr.


“Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia."    
Mateus 5:7 - JFA

Seguindo nosso passeio pelo Sermão do Monte, chegamos à quinta bem-aventurança. E como passamos um tempo longo desde o último texto, penso ser importante recuperar alguns princípios que entendemos determinantes, na compreensão do que podemos considerar uma introdução ao discurso desse sermão.

Podemos começar relembrando que as bem-aventuranças formam um conjunto harmônico, que apresenta características correlatas da personalidade transformada, de todo aquele que sinceramente se devota a Deus. Não se trata de um faça isso logo aquilo, tão presente na literatura positivista dos mecanismos de autoajuda, mas sim de uma apresentação abrangente do caráter daquele que está em marcha para o Reino do Céus. É, na prática, a tradução desse caráter em atitudes relativas a si mesmo, dirigidas em benefício de terceiros, e por fim, que dizem respeito a seu posicionamento social diante daquilo que crê.

Se lembrarmos bem, ou se alguém preferir recorrer aos textos anteriores, as primeiras quatro bem-aventuranças diziam respeito àquilo que o sincero e devotado discípulo pensa e faz, de si e consigo mesmo. Ou seja, nas primeiras quatro bem-aventuranças o cristão é tanto o agente, quanto o beneficiado de seu entendimento e consequentes atitudes. Mas nessa e nas duas próximas beatitudes, haverá um benefício estendido a terceiros. Uma atitude cujo o bem se amplia no foco do que é correto e probo realizar, deixando assim a mensagem de que tudo o que melhora em cada um de nós individualmente, precisa refletir e se traduzir em bem aos outros também.

Tais características introdutórias, portanto, são reveladoras à medida que coloca a relação do homem consigo mesmo, com os outros, e com Deus, na base de todo o ensinamento que se desenvolverá em seguida, definindo-as como a expressão prática da vida cotidiana de uma pessoa piedosa.

Mas por que razão os misericordiosos seriam bem-aventurados? Que vantagens a misericórdia poderá trazer ao misericordioso. A misericórdia seria uma moeda de troca? E que valor teria? De que adianta ao ser humano agir com misericórdia, se o mundo real pertence aos implacáveis? Vamos pensar juntos sobre tudo isso.
  
Podemos começar tentando entender misericórdia, como palavra sempre presente no contexto religioso daqueles dias. Ou seja, a palavra utilizada por Jesus estava tão inserida no contexto social judaico, que nenhuma dúvida causou aos discípulos que o ouviam naquele instante. E como não é nosso objetivo aqui nos aprofundarmos muito nos significados possíveis da palavra na tradição e na literatura judaica, ficaremos com o sentido mais geral e mais amplamente utilizado; o de benevolência da parte ofendida, à parte que descumpriu um pacto ou uma aliança. Uma graça. Portanto, no sentido prático, misericórdia é um sentimento de bondade, que se deve traduzir em atitude bondosa. Mais tarde Paulo relacionará a bondade como fruto do Espírito[1].

É importante ressaltar, que Jesus não está estabelecendo uma condição; quem agir com misericórdia receberá misericórdia. Se assim fosse, a misericórdia de Deus para conosco dependeria de nossa atitude, e assim neutralizaria a graça, pois a alcançaríamos por nossos próprios esforços. Mas antes, a exemplo das características anteriormente relacionadas, é próprio do cristão piedoso agir com misericórdia, por está em marcha com aqueles que receberão misericórdia. Ou seja, o cristão deve exercer misericórdia por gratidão livre e espontânea[2], dada a sua consciência da misericórdia de Deus que o alcançou.

Entre outros tantos exemplos de bondade em exercício na narrativa bíblica, há dois pelos quais tenho particular encanto; o bom samaritano[3] e a mulher adúltera[4]. Entendo que esses dois acontecimentos exemplificam profundamente o significado desse sentimento, esclarecendo respectivamente, a misericórdia como ato de bondade, e a misericórdia como ato de perdão. No primeiro, o samaritano se compadece do estado em que se encontra aquele homem à margem da estrada. Sem cuidado e abandonado ali, ele certamente iria morrer. E mesmo com todos os seus importantes afazeres, decide priorizar o cuidado pleno daquele homem, sem medir custos. Um ato efetivo de compaixão e bondade. No segundo, há um contraponto particularmente especial; não seria ilegal apedrejar aquela adúltera. A lei mosaica lhes autorizava a tanto. Havia ali um delito cujo castigo era o apedrejamento até a morte. Jesus então apresenta-lhes a misericórdia como a alternativa benevolente, de quem abandona o direito, em benefício do pecador. Um ato de compaixão e misericórdia.

Além desses dois exemplos, a Epístola aos Hebreus apresenta Jesus como o sumo sacerdote misericordioso[5]. E tal misericórdia ganha consistência, na medida em que Jesus, a exemplo de nós seres humanos, passou por tudo o que passamos, sabendo na carne, as dificuldades e carências que sofremos em nossa vida real e cotidiana. Ele se compadece de nós, embora o pecado nos faça merecedores do castigo de morte. Onde o pecado abundou, superabundou a graça[6].

A bíblia nos ensina que o amor cobre uma multidão de pecados. Isso nos reporta a uma situação confrontante com a realidade que vivemos em nossos dias. Vivemos tempos difíceis, em que somos tocados por um ímpeto de vingança pessoal e social. Talvez motivado por corações endurecidos, talvez pela falta de ação do Estado, ou as duas coisas somadas, diariamente flagramos casos em que a vingança, travestida de justiça pelas próprias mãos, tem feito vítimas nas mais diversas camadas e grupos sociais. E o que se instaura, na ausência da bondade, da misericórdia e da compaixão, é a maldade, a indiferença e a intolerância. Afinal, por se multiplicar a iniquidade, o amor de muitos esfriará[7].

Misericórdia quero e não sacrifício[8]. Os fariseus se escandalizavam porque Jesus vivia rodeado por pessoas que os fariseus consideravam impuras, e portanto contamináveis. Manter-se "puro" segundo a tradição judaica, requeria restringir determinados contatos e convívios, principalmente com aqueles que estavam à margem daquela sociedade. Acontece que a falta de um sentimento de misericórdia, na essência da relação com Deus, torna nula toda a ritualidade religiosa. E isso incomodava profundamente o próprio Deus, como relatado no Antigo Testamento[9]. Um cristão sem um coração misericordioso, é um cristão vazio do sentimento mais básico em um coração transformado; o amor[10].

A verdade é que um coração misericordioso é uma referência da bondade e do amor de Deus no mundo. E nós, cristãos, não podemos deixar de ter essa marca. Numa realidade mundial onde o ódio, a indiferença e a intolerância dominam as atitudes e reações mais instintivas, a bondade e a misericórdia de Deus precisa estar traduzida em nossas relações, no compadecimento com todos, acolhendo e cuidando daqueles a quem o Senhor nos envia.



[1]  Gálatas 5:22
[2]  Mateus 18:23-35
[3]  Lucas 10
[4]  João 8:1-11
[5]  Hebreus 2:14-18
[6]  Romanos 5:20-21
[7]  Mateus 24:12
[8]  Mateus 9:13
[9]  Oséias 6:6; Amós 5:21-23; Miquéias 6:6-8; Mateus 23:23-26
[10]  I João 2:9-11; 3:14-15; 4:19-20