segunda-feira, 21 de março de 2016

Coração limpo vê além


Por Jânsen Leiros Jr.


“Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus."
                      Mateus 5:8 - JFA

É quase impossível lermos as Bem-Aventuranças, sem que isso nos cause uma certa inquietação por uma flagrante inadequação pessoal com seu conteúdo. Se é com sinceridade que as lemos, logo somos levados a uma autoconfrontação, que nos impele a uma reflexão minimamente honesta, em que nos vemos distantes daquilo que nos apresentam; mansidão, humildade, misericórdia... E agora mais essa, limpos de coração.

Ora, quem pode se considerar honestamente limpo de coração. Sem mácula, sem erro... sem pecado? E se os limpos de coração é que verão a Deus, quem então o verá? Quem é limpo de coração para tamanha recompensa? Quem diante disso pode dizer eu verei a Deus? Pois ninguém jamais o viu[1].

Se considerarmos que Jesus está falando do reino de Deus, para onde marchamos todos os que vivemos sob seu domínio, nenhuma das bem-aventuranças descritas pode ser uma utopia ou uma condição inatingível. Portanto ver a Deus será efetivamente uma circunstância natural e decorrente aos que são limpos de coração. Logo, há quem seja ou se torne limpo de coração. Mas quem é limpo de coração? Ou melhor, o que é ser limpo de coração?

O coração é o centro do ser e da personalidade do indivíduo, diria Martyn Lloyde-Jones, ao comentar essa bem-aventurança. E ele não está muito longe da verdade, pelo menos em termos de correlação bíblica. Toda vez que um autor bíblico fala da origem da vontade, intenções e pretensões humanas, coloca o coração como sua fonte[2].

Quando questionado por não lavar as mãos antes de comer, Jesus afirmou que limpar o exterior do copo e do prato, não passava de exterioridade frívola, pois em contrapartida, seus interiores estavam repletos de sujeira e podridão. E logo depois disse para que seus discípulos se guardassem do fermento dos fariseus. Isso nos dá uma boa pista de que, ao referir-se a um coração limpo, Jesus estivesse falando de corações verdadeiros, sem falsidades. Não de corações perfeitos e imaculados, mas sinceros e sem fingimentos.

Há comentadores que defendem a existência de uma relação entre as Bem-Aventuranças. Assim, os humildes estariam ligados aos misericordiosos, os que choram com os limpos de coração, e os mansos com os pacificadores. Confesso que esse modo de análise do texto me agrada, principalmente pela obviedade da interdependência das condições. Pois os que humildemente se percebem dependentes da misericórdia de Deus agem com misericórdia com o próximo, assim como os que choram pranteando sua condição de pecador, está purificado em seu coração arrependido, contrito e quebrantado[3].

Logo, um coração limpo não é obra humana. Não é uma condição alcançada por vontade própria, decorrente de um esforço pessoal. Um coração limpo é um coração justificado pela graça de Deus. Não é um coração puro, mas purificado, lavado. Limpos de coração, são aqueles que não esconderam suas mazelas em uma pureza aparente. Antes se derramaram em lágrimas diante de Deus, confessando seus pecados[4].

Há porém um outro aspecto bastante relevante nessa bem-aventurança; a possibilidade de ver Deus. Não é segredo pra quase ninguém no mundo moderno, que Deus é espírito[5], e portanto invisível. Essa impossibilidade de enxergarmos Deus diante com nossos próprios olhos, segundo muitos afirmaram ao longo da história, é porque nossos olhos são olhos pecadores, e por isso ninguém jamais pode ver Deus.

Mas se entendemos que coração limpo refere-se a um coração purificado, em cuja obra purificadora é realizada pelo próprio Deus, então aquele que foi purificado deveria passar a enxerga-lo em algum lugar onde pudesse estar. Sabemos porém que isso nunca aconteceu. E outra vez poderíamos recorrer, para explicação, ao fato de que embora purificados no coração, estamos presos a um corpo de pecado, que opera contra nós.

Em ambas as hipóteses, trabalhamos com um determinante poder do pecado. No primeiro, tendo um coração impuro, o indivíduo não pode ver Deus, que é santo, o que de certa forma poderia se encaixar bem no contexto. Mas no segundo caso, o pecado ainda exerceria poder sobre o purificado de coração, e isso não é possível, pois tornaria a obra de Cristo incompleta. Ora, ele nos livrou do poder do pecado e da morte[6]. Ou seja, em Cristo somos libertos de toda e qualquer consequência que o pecado possa exercer sobre nossas vidas. Inclusive o de não podermos ver Deus.

Ora, fica evidente que ao falar de ver Deus, Jesus não se refere a enxerga-lo, mas se refere a percebê-lo e senti-lo, e tão sensorialmente admiti-lo próximo, que ver Deus torna-se muito mais que simplesmente enxerga-lo. Ser purificado de coração, tornar-nos capazes de interagirmos com Deus como quem o enxerga face a face, numa relação direta e transparente, onde a verdade revelada de parte a parte, vai delineando sem sombras ou equívocos, quem Deus é[7].

Talvez por essa razão, o purificado de coração veja Deus criando, onde o ímpio enxerga somente a natureza formando-se ao acaso. Talvez por isso ele veja Deus agindo onde o homem natural entende apenas sorte ou azar. É, sem dúvida, por esse coração limpo que ele Deus amando o mundo em Cristo, onde o incrédulo sabe apenas de um judeu revolucionário, punido com a morte, por pregar uma doutrina impossível de ser vivida.



[1]  João 1:18; 1 João 4:12
[2]  Provérbios 4:23
[3]  Salmos 51:17
[4]  1 João 1:9
[5]  João 4:24
[6]  Romanos 8:2
[7]  Êxodo 33:11

quarta-feira, 2 de março de 2016

Quando fome e sede causam vida


Por Jânsen Leiros Jr.


“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos."
                      Mateus 5:6 - TB

Seguindo nosso passeio pelas pedras e relevos do Sermão do Monte, nos deparamos com a quarta bem-aventurança. Fome e sede parecem apontar a uma questão meramente social para alguns, confirmando o caráter anterior atribuído a pobres, presente na primeira bem-aventurança do discurso. E esse texto, ao longo de anos, de forma recorrente é utilizado como sustentação ideológica para diversos movimentos sociais mundo afora.

Não que ele não possa mesmo inspirar tais ações. Não que seja menos nobre utilizá-lo como instrumento de conscientização da necessidade de se realizar urgente justiça social em diversos países por todo o mundo, mesmo em países tidos como desenvolvidos ou países de primeiro mundo. Nada contra. Mas não podemos parar por aí, pois a mensagem do texto é ainda mais profunda e enriquecedora, podendo sim promover uma verdadeira justiça social, ampliando as possibilidades, através de pessoas profundamente motivadas pela ação da justiça de Deus em suas vidas.

Mas por que o texto não se refere à justiça social, à mitigação da fome e da sede dessa gente que necessita tão direta e urgentemente da ação do estado, e da solidariedade de quem não passou ou não passa por qualquer privação de necessidades tão vitais? Simplesmente porque esse não era o contexto e a circunstância em que o discurso do sermão foi proclamado. Não que a fome e a sede dessa gente não fosse uma preocupação de Jesus. Era, é, e sempre será. Mas naquele momento, ao proferir aquele sermão, quem tem a fome e a sede de justiça, seguiu o contexto do que se reconhece pobre de espírito, acompanhou o ritmo do que chora seu pranto, e caminhou junto ao manso que opta por confiar no cuidado de Deus. Quem tem fome e sede de justiça é um bem-aventurado.

Então essa fome e essa sede não podem se referir a um estado de carência de comida ou de bebida. Ou alguém se oferece a explicar qual seria a vantagem, ainda que futura, de se passar fome e sede? Sim, porque para quem sente fome e sede só há um bem a perseguir, um só objetivo; mitigar a fome e a sede o mais rapidamente possível. De modo que não há qualquer recompensa futura, que possa minimizar essa falta tão absoluta e urgente. Além disso, caso Jesus estivesse se referindo às necessidades de alimentação e hidratação, a frase teria sido: Bem-Aventurados os que passam fome e sede, porque serão saciados. Ora, quem tem fome e sede precisa de pão e água, não de justiça, pois não a poderia comer, e nem sequer beber.

É claro, não sou cego às vicissitudes da vida. A falta de justiça social pode, e na prática provoca mesmo, carências de diversas e importantes necessidades primárias ao indivíduo alijado de seus direitos mais básicos. Mas se tais necessidades existem e não são atendidas, onde estaria o consolo? Em que circunstância se basearia a bem-aventurança proclamada por Jesus? Numa saciedade futura onde não existirá isso que sofro no presente? Estaria Jesus dizendo: Passe aí um pouquinho de fome e sede pela injustiça do mundo, que logo você morre de inanição, e no paraíso você, ou não precisará de comida e bebida, ou lá haverá mesa farta e bebida à vontade. Penso que isso seria cruel e cínico, pra falar apenas o que me vem à cabeça de pronto.

Assim não nos sobram muitas alternativas. A fome e a sede a que se refere a quarta bem-aventurança, não é uma carência física, mas uma carência da alma. E não é apenas uma carência provisória e pontual. Trata-se de um desejo permanente pela justiça de Deus. Sim, justiça de Deus. Porque se serão fartos no porvir; se tal saciedade só se dará no futuro, assim como dos pobres será o reino dos céus, e assim como os mansos que herdarão a terra, se é nesse reino de Deus que ocorrerá a fartura da justiça pela qual tem fome e sede, essa justiça só pode ser a justiça de Deus. Mas por que um desejo permanente? Por que tal carência se perpetuará até a morte?

O contexto de todo o sermão de Jesus, aponta para um aprofundamento da conduta espiritual. Comparativamente, Jesus irá sempre confrontar a superficialidade religiosa e exibicionista dos fariseus, com a legítima contrição daquele que se reconhece pobre de espírito e carente de Deus, e por isso pranteiam a fragilidade de suas almas. Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no Reino dos Céus.[1]

Ora, então o que é a justiça de Deus pela qual devemos ser famintos e sedentos. E que justiça é essa nossa, que excedendo à dos escribas e fariseus, me fará entrar no Reino dos Céus? Precisaremos dar uma olhadinha nisso primeiro, antes de prosseguirmos, pois esse conceito é muitíssimo importante para nossa reflexão.

Antes de mais nada é necessário desconstruir alguns conceitos atribuídos à justiça em nosso senso comum. O que entendemos como justiça está intimamente ligado ao conceito forense, em que fazer justiça é retribuir um ato ilegal e por isso injusto, com aplicação de uma punição estabelecida na lei, de modo que o infrator "pague" pelo seu ato de injustiça. Portanto, justiça em nosso contexto cotidiano mais simples, remete à punição de culpados, ou reequilíbrio de "desigualdades"; dois pra lá, dois pra cá. Porém não é esse o sentido bíblico de justiça. Nela, os termos tsedãqâ no Antigo Testamento, ou dikaiosyné no Novo Testamento, estão muito mais ligados ao conceito de recuperação de uma condição, ou um resgate. Como uma redenção do condenado ainda no corredor da morte do tribunal celestial.

Como pode um homem ser justo para com Deus?[2] - pergunta Jó, acusado de ter cometido alguma injustiça diante de Deus, que explicasse sua desventura. Mas não somos todos injustos? - seria uma continuação possível de sua argumentação. Sim, eu diria a Jó, certamente somos todos injustos perante Deus. Como está escrito: Não há justo, nem sequer um.[3] Então a punição é justa e adequada. E não há quem possa dela escapar. Pelo menos não com subterfúgios, barganhas, ou mesmo sacrifícios de adulação. Pois todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças como trapo da imundícia; e todos nós murchamos como a folha, e as nossas iniqüidades, como o vento, nos arrebatam.[4] Fizeste-me compreender que nem oferendas e sacrifícios desejaste; não requereste de mim holocaustos para remir meus pecados.[5] De modo que não só somos todos injustos, como também não há nada que possamos fazer por nós mesmos para nos resgatar da punição iminente.


“E creu Abrão no Senhor, e o Senhor imputou-lhe isto como justiça."
                      Gênesis 15:6  - JFA

É muito importante notar o que revela esse pequeno versículo, que mais tarde será citado no livro de Hebreus, já no Novo Testamento. Ele diz que a justiça não é realizada por Abraão, mas sim imputada a ele, atribuída, por um princípio de natureza e não de origem. Ele passa a estar justo (natureza), mas não foi ele que realizou tal justiça (origem). A quem pois então pertence a justiça? Pertence a Deus. E que justiça é essa? Essa justiça é o resgate do homem de sua condição de injusto, e que por injusto passível da punição.

Ora, quem é que depende da justiça de Deus? Todos. Mas a quem é que Deus a atribui? A quem crê. A quem reconhece que depende de Deus e sabe de sua pobreza espiritual. A quem pranteia essa condição de pobreza e chora. A quem aguarda o favorecimento imerecido de Deus, e não tenta agir por conta própria, se fazendo justo pelas próprias mãos. Por fim, a quem se encontra faminto e sedento por ela. Portanto a justiça de Deus é o resgate de quem crê. É o resgate do faminto e do sedento, fazendo dele um bem-aventurado.


1Justificados, pois, pela fé, tenhamos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, 2 por quem obtivemos também nosso acesso pela fé a esta graça, na qual estamos firmes, e gloriemo-nos na esperança da glória de Deus."
                      Romanos 5:1 e 2 - JFA

Eis, portanto, a finalidade última da justificação; o resgate da relação entre Criador e criatura. A restauração de uma relação genuína, renovada e legítima. Profunda e muito mais abençoadora. Insaciável e capaz de fazer dessa fome e dessa sede, uma motivação decisiva na direção de uma conduta justa, que exceda à falsidade e à fantasia pseudo devotada dos escribas e fariseus. Bem-Aventurado os famintos e sedentos dessa justiça; desse resgate. Bem-Aventurado os que se alimentam da vontade de Deus, e saciam suas sedes em poços abertos pela providência e pelo amor de Deus. Porque aquele que beber da água que eu (Jesus) lhe der nunca terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que jorre para a vida eterna.[6] Bem-Aventurado é aquele cuja iniquidade é perdoada, cujo pecado é coberto.[7]

É portanto dessa relação que temos fome e sede. É desse convívio íntimo que dependemos por predileção. Bem-Aventurado somos por marcharmos nesse ciclo virtuoso, em que a carência jamais se esgota, ainda que a fartura jamais se acabe.



[1]  Mateus 5:20
[2]  Jó 9:2
[3]  Romanos 3:10
[4]  Isaías 64:6
[5] S almos 40:6
[6]  João 4:14
[7]  Salmos 32:1