quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Os pacíficos atores


Por Jânsen Leiros Jr.


“Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus."
                       Mateus 5:9 - JFA


9 O amor seja não fingido. Aborrecei o mal e apegai-vos ao bem. 10 Amai-vos cordialmente uns aos outros com amor fraternal, preferindo-vos em honra uns aos outros; 11 não sejais vagarosos no cuidado; sede fervorosos no espírito, servindo ao Senhor; 12 alegrai-vos na esperança, sede pacientes na tribulação, perseverai na oração; 13 acudi aos santos nas suas necessidades, exercei a hospitalidade;  

14 abençoai aos que vos perseguem; abençoai, e não amaldiçoeis; 15 alegrai-vos com os que se alegram; chorai com os que choram; 16 sede unânimes entre vós; não ambicioneis coisas altivas mas acomodai-vos às humildes; não sejais sábios aos vossos olhos; 17 a ninguém torneis mal por mal; procurai as coisas dignas, perante todos os homens. 18 Se for possível, quanto depender de vós, tende paz com todos os homens. 19 Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira de Deus, porque está escrito: Minha é a vingança, eu retribuirei, diz o Senhor. 20 Antes, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto amontoarás brasas de fogo sobre a sua cabeça. 21 Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem."
                       Romanos 12:9-21 - JFA

Calma, calma! Eu sei que falar em pacificação numa conjuntura mundial onde o confronto direto e o conflito armado estão na ordem o dia, soa piegas e totalmente fora de contexto. Eu sei que as guerras nossas de cada dia têm tomado de assalto os noticiários, nos envolvendo em um clima de tensão e atenção. Na sequência das bem-aventuranças, contudo, chegou a hora de falarmos da paz como característica daqueles que marcham a caminho do reino de Deus.

Sendo essa a sétima bem-aventurança, a paz parece não ser incluída aqui por acaso, pois ser limpo de coração (a bem-aventurança anterior) se apresenta como pré-condição para se buscar a paz[1], pois a sinceridade e a franqueza se mostram necessárias em um processo de reconciliação, ao mesmo tempo que é em paz que se suporta sem medo, a perseguição e as calúnias a que são submetidos aqueles que seguem a justiça de Deus. Sim, é importante dar destaque às duas vertentes da paz; pacificação e reconciliação. Dois contextos possíveis para um mesmo espírito pacificador.

Primeiro vamos ao que evita o conflito e a contenda, a quem convencionaremos chamar de pacificador. Alguns comentadores fazem alusão a uma provável estruturação do texto das bem-aventuranças, em que os pacificadores do verso nove estão ligados aos mansos do verso seis. Confesso que vejo com bons olhos essa probabilidade, dada a correlação coerente e de sentido aplicável, uma vez que os mansos optam invariavelmente pela paz, perseguindo sua manutenção não por covardia, mas por convicção de postura e viver harmonioso.

Nesse aspecto, a atitude nascida da mansidão não é aquela decorrente do temor pelo conflito em desvantagem de razão ou circunstância. Pelo contrário, o pacificador é aquele que tem a razão ao seu lado. Ele também possui a força necessária para subjulgar seu eventual oponente em um confronto direto, mas ainda assim ele busca insistentemente o caminho da paz, pelo espírito de mansidão e pela segurança que desfruta em Deus[2]. Ele não depende da luta para sentir-se sobrepujando-se a nada nem a ninguém.

O pacificador tem prazer na paz, ainda que esta custe abrir mão de direitos ou qualquer outra vantagem que lhe seja cabida. Mais tarde o apóstolo Paulo fará alusão a tal comportamento, ao sugerir que devemos sempre buscar a paz com todas as pessoas, além de sempre a promover preferivelmente, quando a nós nos couber tal opção. Afinal, Deus nos chamou à paz[3].

Já o aspecto de reconciliação, intrínseco ao espírito pacificador, está ligado ao papel resgatador que Jesus exerce reconciliando a humanidade com Deus; a sua justiça. A paz é uma obra divina e Deus é autor da paz e da reconciliação, afirmou John Stott apontando que somente Deus poderia cruzar o abismo que nos separava d'Ele[4], bem como somente Ele é capaz de unir povos e etnias inimigas, fazendo de tais um só povo; o seu povo, sua igreja. Não é sem razão que Jesus é chamado o Príncipe da Paz[5].

É importante ressaltar, sobretudo, que a paz não é o abandono barato de um conflito iminente ou desencorajador, ou mesmo uma rendição estratégica de quem teme o desfecho desfavorável e danoso, como já dissemos acima. A paz tem sim um custo, e alto, assim como custou alto preço a Jesus reconciliar a humanidade com Deus. Custou-lhe esvaziar-se de si mesmo[6], não colocando seus próprios interesses ou conveniências, por mais nobres que fossem, acima do plano redentor, reconciliador e pacificador de Deus. Jesus deu-se à paz, apesar de todo o preço que isso lhe custou.

Que o Senhor nos ensine não só a gozar de sua paz, nascida da esperança que temos n'Ele, mas a também e acima de tudo, promovermos a paz por onde quer que passemos ou vivamos, não só construindo um ambiente de sereno e sem conflito, mas também comunicando ao mundo a reconciliação de Deus com o mundo, por Cristo Jesus, a nossa Paz.

[1]  Hebreus 12:14
[2]  1 Pedro 2:23
[3]  1 Coríntios 7:15b; 1 Pedro 3:11
[4]  Efésios 2:11-17; Colossenses 1:19-20
[5]  Isaías 9:6
[6]  Filipenses 2:5-8

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Misericórdia; sentimento sempre bem-vindo


Por Jânsen Leiros Jr.


“Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia."    
Mateus 5:7 - JFA

Seguindo nosso passeio pelo Sermão do Monte, chegamos à quinta bem-aventurança. E como passamos um tempo longo desde o último texto, penso ser importante recuperar alguns princípios que entendemos determinantes, na compreensão do que podemos considerar uma introdução ao discurso desse sermão.

Podemos começar relembrando que as bem-aventuranças formam um conjunto harmônico, que apresenta características correlatas da personalidade transformada, de todo aquele que sinceramente se devota a Deus. Não se trata de um faça isso logo aquilo, tão presente na literatura positivista dos mecanismos de autoajuda, mas sim de uma apresentação abrangente do caráter daquele que está em marcha para o Reino do Céus. É, na prática, a tradução desse caráter em atitudes relativas a si mesmo, dirigidas em benefício de terceiros, e por fim, que dizem respeito a seu posicionamento social diante daquilo que crê.

Se lembrarmos bem, ou se alguém preferir recorrer aos textos anteriores, as primeiras quatro bem-aventuranças diziam respeito àquilo que o sincero e devotado discípulo pensa e faz, de si e consigo mesmo. Ou seja, nas primeiras quatro bem-aventuranças o cristão é tanto o agente, quanto o beneficiado de seu entendimento e consequentes atitudes. Mas nessa e nas duas próximas beatitudes, haverá um benefício estendido a terceiros. Uma atitude cujo o bem se amplia no foco do que é correto e probo realizar, deixando assim a mensagem de que tudo o que melhora em cada um de nós individualmente, precisa refletir e se traduzir em bem aos outros também.

Tais características introdutórias, portanto, são reveladoras à medida que coloca a relação do homem consigo mesmo, com os outros, e com Deus, na base de todo o ensinamento que se desenvolverá em seguida, definindo-as como a expressão prática da vida cotidiana de uma pessoa piedosa.

Mas por que razão os misericordiosos seriam bem-aventurados? Que vantagens a misericórdia poderá trazer ao misericordioso. A misericórdia seria uma moeda de troca? E que valor teria? De que adianta ao ser humano agir com misericórdia, se o mundo real pertence aos implacáveis? Vamos pensar juntos sobre tudo isso.
  
Podemos começar tentando entender misericórdia, como palavra sempre presente no contexto religioso daqueles dias. Ou seja, a palavra utilizada por Jesus estava tão inserida no contexto social judaico, que nenhuma dúvida causou aos discípulos que o ouviam naquele instante. E como não é nosso objetivo aqui nos aprofundarmos muito nos significados possíveis da palavra na tradição e na literatura judaica, ficaremos com o sentido mais geral e mais amplamente utilizado; o de benevolência da parte ofendida, à parte que descumpriu um pacto ou uma aliança. Uma graça. Portanto, no sentido prático, misericórdia é um sentimento de bondade, que se deve traduzir em atitude bondosa. Mais tarde Paulo relacionará a bondade como fruto do Espírito[1].

É importante ressaltar, que Jesus não está estabelecendo uma condição; quem agir com misericórdia receberá misericórdia. Se assim fosse, a misericórdia de Deus para conosco dependeria de nossa atitude, e assim neutralizaria a graça, pois a alcançaríamos por nossos próprios esforços. Mas antes, a exemplo das características anteriormente relacionadas, é próprio do cristão piedoso agir com misericórdia, por está em marcha com aqueles que receberão misericórdia. Ou seja, o cristão deve exercer misericórdia por gratidão livre e espontânea[2], dada a sua consciência da misericórdia de Deus que o alcançou.

Entre outros tantos exemplos de bondade em exercício na narrativa bíblica, há dois pelos quais tenho particular encanto; o bom samaritano[3] e a mulher adúltera[4]. Entendo que esses dois acontecimentos exemplificam profundamente o significado desse sentimento, esclarecendo respectivamente, a misericórdia como ato de bondade, e a misericórdia como ato de perdão. No primeiro, o samaritano se compadece do estado em que se encontra aquele homem à margem da estrada. Sem cuidado e abandonado ali, ele certamente iria morrer. E mesmo com todos os seus importantes afazeres, decide priorizar o cuidado pleno daquele homem, sem medir custos. Um ato efetivo de compaixão e bondade. No segundo, há um contraponto particularmente especial; não seria ilegal apedrejar aquela adúltera. A lei mosaica lhes autorizava a tanto. Havia ali um delito cujo castigo era o apedrejamento até a morte. Jesus então apresenta-lhes a misericórdia como a alternativa benevolente, de quem abandona o direito, em benefício do pecador. Um ato de compaixão e misericórdia.

Além desses dois exemplos, a Epístola aos Hebreus apresenta Jesus como o sumo sacerdote misericordioso[5]. E tal misericórdia ganha consistência, na medida em que Jesus, a exemplo de nós seres humanos, passou por tudo o que passamos, sabendo na carne, as dificuldades e carências que sofremos em nossa vida real e cotidiana. Ele se compadece de nós, embora o pecado nos faça merecedores do castigo de morte. Onde o pecado abundou, superabundou a graça[6].

A bíblia nos ensina que o amor cobre uma multidão de pecados. Isso nos reporta a uma situação confrontante com a realidade que vivemos em nossos dias. Vivemos tempos difíceis, em que somos tocados por um ímpeto de vingança pessoal e social. Talvez motivado por corações endurecidos, talvez pela falta de ação do Estado, ou as duas coisas somadas, diariamente flagramos casos em que a vingança, travestida de justiça pelas próprias mãos, tem feito vítimas nas mais diversas camadas e grupos sociais. E o que se instaura, na ausência da bondade, da misericórdia e da compaixão, é a maldade, a indiferença e a intolerância. Afinal, por se multiplicar a iniquidade, o amor de muitos esfriará[7].

Misericórdia quero e não sacrifício[8]. Os fariseus se escandalizavam porque Jesus vivia rodeado por pessoas que os fariseus consideravam impuras, e portanto contamináveis. Manter-se "puro" segundo a tradição judaica, requeria restringir determinados contatos e convívios, principalmente com aqueles que estavam à margem daquela sociedade. Acontece que a falta de um sentimento de misericórdia, na essência da relação com Deus, torna nula toda a ritualidade religiosa. E isso incomodava profundamente o próprio Deus, como relatado no Antigo Testamento[9]. Um cristão sem um coração misericordioso, é um cristão vazio do sentimento mais básico em um coração transformado; o amor[10].

A verdade é que um coração misericordioso é uma referência da bondade e do amor de Deus no mundo. E nós, cristãos, não podemos deixar de ter essa marca. Numa realidade mundial onde o ódio, a indiferença e a intolerância dominam as atitudes e reações mais instintivas, a bondade e a misericórdia de Deus precisa estar traduzida em nossas relações, no compadecimento com todos, acolhendo e cuidando daqueles a quem o Senhor nos envia.



[1]  Gálatas 5:22
[2]  Mateus 18:23-35
[3]  Lucas 10
[4]  João 8:1-11
[5]  Hebreus 2:14-18
[6]  Romanos 5:20-21
[7]  Mateus 24:12
[8]  Mateus 9:13
[9]  Oséias 6:6; Amós 5:21-23; Miquéias 6:6-8; Mateus 23:23-26
[10]  I João 2:9-11; 3:14-15; 4:19-20

segunda-feira, 21 de março de 2016

Coração limpo vê além


Por Jânsen Leiros Jr.


“Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus."
                      Mateus 5:8 - JFA

É quase impossível lermos as Bem-Aventuranças, sem que isso nos cause uma certa inquietação por uma flagrante inadequação pessoal com seu conteúdo. Se é com sinceridade que as lemos, logo somos levados a uma autoconfrontação, que nos impele a uma reflexão minimamente honesta, em que nos vemos distantes daquilo que nos apresentam; mansidão, humildade, misericórdia... E agora mais essa, limpos de coração.

Ora, quem pode se considerar honestamente limpo de coração. Sem mácula, sem erro... sem pecado? E se os limpos de coração é que verão a Deus, quem então o verá? Quem é limpo de coração para tamanha recompensa? Quem diante disso pode dizer eu verei a Deus? Pois ninguém jamais o viu[1].

Se considerarmos que Jesus está falando do reino de Deus, para onde marchamos todos os que vivemos sob seu domínio, nenhuma das bem-aventuranças descritas pode ser uma utopia ou uma condição inatingível. Portanto ver a Deus será efetivamente uma circunstância natural e decorrente aos que são limpos de coração. Logo, há quem seja ou se torne limpo de coração. Mas quem é limpo de coração? Ou melhor, o que é ser limpo de coração?

O coração é o centro do ser e da personalidade do indivíduo, diria Martyn Lloyde-Jones, ao comentar essa bem-aventurança. E ele não está muito longe da verdade, pelo menos em termos de correlação bíblica. Toda vez que um autor bíblico fala da origem da vontade, intenções e pretensões humanas, coloca o coração como sua fonte[2].

Quando questionado por não lavar as mãos antes de comer, Jesus afirmou que limpar o exterior do copo e do prato, não passava de exterioridade frívola, pois em contrapartida, seus interiores estavam repletos de sujeira e podridão. E logo depois disse para que seus discípulos se guardassem do fermento dos fariseus. Isso nos dá uma boa pista de que, ao referir-se a um coração limpo, Jesus estivesse falando de corações verdadeiros, sem falsidades. Não de corações perfeitos e imaculados, mas sinceros e sem fingimentos.

Há comentadores que defendem a existência de uma relação entre as Bem-Aventuranças. Assim, os humildes estariam ligados aos misericordiosos, os que choram com os limpos de coração, e os mansos com os pacificadores. Confesso que esse modo de análise do texto me agrada, principalmente pela obviedade da interdependência das condições. Pois os que humildemente se percebem dependentes da misericórdia de Deus agem com misericórdia com o próximo, assim como os que choram pranteando sua condição de pecador, está purificado em seu coração arrependido, contrito e quebrantado[3].

Logo, um coração limpo não é obra humana. Não é uma condição alcançada por vontade própria, decorrente de um esforço pessoal. Um coração limpo é um coração justificado pela graça de Deus. Não é um coração puro, mas purificado, lavado. Limpos de coração, são aqueles que não esconderam suas mazelas em uma pureza aparente. Antes se derramaram em lágrimas diante de Deus, confessando seus pecados[4].

Há porém um outro aspecto bastante relevante nessa bem-aventurança; a possibilidade de ver Deus. Não é segredo pra quase ninguém no mundo moderno, que Deus é espírito[5], e portanto invisível. Essa impossibilidade de enxergarmos Deus diante com nossos próprios olhos, segundo muitos afirmaram ao longo da história, é porque nossos olhos são olhos pecadores, e por isso ninguém jamais pode ver Deus.

Mas se entendemos que coração limpo refere-se a um coração purificado, em cuja obra purificadora é realizada pelo próprio Deus, então aquele que foi purificado deveria passar a enxerga-lo em algum lugar onde pudesse estar. Sabemos porém que isso nunca aconteceu. E outra vez poderíamos recorrer, para explicação, ao fato de que embora purificados no coração, estamos presos a um corpo de pecado, que opera contra nós.

Em ambas as hipóteses, trabalhamos com um determinante poder do pecado. No primeiro, tendo um coração impuro, o indivíduo não pode ver Deus, que é santo, o que de certa forma poderia se encaixar bem no contexto. Mas no segundo caso, o pecado ainda exerceria poder sobre o purificado de coração, e isso não é possível, pois tornaria a obra de Cristo incompleta. Ora, ele nos livrou do poder do pecado e da morte[6]. Ou seja, em Cristo somos libertos de toda e qualquer consequência que o pecado possa exercer sobre nossas vidas. Inclusive o de não podermos ver Deus.

Ora, fica evidente que ao falar de ver Deus, Jesus não se refere a enxerga-lo, mas se refere a percebê-lo e senti-lo, e tão sensorialmente admiti-lo próximo, que ver Deus torna-se muito mais que simplesmente enxerga-lo. Ser purificado de coração, tornar-nos capazes de interagirmos com Deus como quem o enxerga face a face, numa relação direta e transparente, onde a verdade revelada de parte a parte, vai delineando sem sombras ou equívocos, quem Deus é[7].

Talvez por essa razão, o purificado de coração veja Deus criando, onde o ímpio enxerga somente a natureza formando-se ao acaso. Talvez por isso ele veja Deus agindo onde o homem natural entende apenas sorte ou azar. É, sem dúvida, por esse coração limpo que ele Deus amando o mundo em Cristo, onde o incrédulo sabe apenas de um judeu revolucionário, punido com a morte, por pregar uma doutrina impossível de ser vivida.



[1]  João 1:18; 1 João 4:12
[2]  Provérbios 4:23
[3]  Salmos 51:17
[4]  1 João 1:9
[5]  João 4:24
[6]  Romanos 8:2
[7]  Êxodo 33:11

quarta-feira, 2 de março de 2016

Quando fome e sede causam vida


Por Jânsen Leiros Jr.


“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos."
                      Mateus 5:6 - TB

Seguindo nosso passeio pelas pedras e relevos do Sermão do Monte, nos deparamos com a quarta bem-aventurança. Fome e sede parecem apontar a uma questão meramente social para alguns, confirmando o caráter anterior atribuído a pobres, presente na primeira bem-aventurança do discurso. E esse texto, ao longo de anos, de forma recorrente é utilizado como sustentação ideológica para diversos movimentos sociais mundo afora.

Não que ele não possa mesmo inspirar tais ações. Não que seja menos nobre utilizá-lo como instrumento de conscientização da necessidade de se realizar urgente justiça social em diversos países por todo o mundo, mesmo em países tidos como desenvolvidos ou países de primeiro mundo. Nada contra. Mas não podemos parar por aí, pois a mensagem do texto é ainda mais profunda e enriquecedora, podendo sim promover uma verdadeira justiça social, ampliando as possibilidades, através de pessoas profundamente motivadas pela ação da justiça de Deus em suas vidas.

Mas por que o texto não se refere à justiça social, à mitigação da fome e da sede dessa gente que necessita tão direta e urgentemente da ação do estado, e da solidariedade de quem não passou ou não passa por qualquer privação de necessidades tão vitais? Simplesmente porque esse não era o contexto e a circunstância em que o discurso do sermão foi proclamado. Não que a fome e a sede dessa gente não fosse uma preocupação de Jesus. Era, é, e sempre será. Mas naquele momento, ao proferir aquele sermão, quem tem a fome e a sede de justiça, seguiu o contexto do que se reconhece pobre de espírito, acompanhou o ritmo do que chora seu pranto, e caminhou junto ao manso que opta por confiar no cuidado de Deus. Quem tem fome e sede de justiça é um bem-aventurado.

Então essa fome e essa sede não podem se referir a um estado de carência de comida ou de bebida. Ou alguém se oferece a explicar qual seria a vantagem, ainda que futura, de se passar fome e sede? Sim, porque para quem sente fome e sede só há um bem a perseguir, um só objetivo; mitigar a fome e a sede o mais rapidamente possível. De modo que não há qualquer recompensa futura, que possa minimizar essa falta tão absoluta e urgente. Além disso, caso Jesus estivesse se referindo às necessidades de alimentação e hidratação, a frase teria sido: Bem-Aventurados os que passam fome e sede, porque serão saciados. Ora, quem tem fome e sede precisa de pão e água, não de justiça, pois não a poderia comer, e nem sequer beber.

É claro, não sou cego às vicissitudes da vida. A falta de justiça social pode, e na prática provoca mesmo, carências de diversas e importantes necessidades primárias ao indivíduo alijado de seus direitos mais básicos. Mas se tais necessidades existem e não são atendidas, onde estaria o consolo? Em que circunstância se basearia a bem-aventurança proclamada por Jesus? Numa saciedade futura onde não existirá isso que sofro no presente? Estaria Jesus dizendo: Passe aí um pouquinho de fome e sede pela injustiça do mundo, que logo você morre de inanição, e no paraíso você, ou não precisará de comida e bebida, ou lá haverá mesa farta e bebida à vontade. Penso que isso seria cruel e cínico, pra falar apenas o que me vem à cabeça de pronto.

Assim não nos sobram muitas alternativas. A fome e a sede a que se refere a quarta bem-aventurança, não é uma carência física, mas uma carência da alma. E não é apenas uma carência provisória e pontual. Trata-se de um desejo permanente pela justiça de Deus. Sim, justiça de Deus. Porque se serão fartos no porvir; se tal saciedade só se dará no futuro, assim como dos pobres será o reino dos céus, e assim como os mansos que herdarão a terra, se é nesse reino de Deus que ocorrerá a fartura da justiça pela qual tem fome e sede, essa justiça só pode ser a justiça de Deus. Mas por que um desejo permanente? Por que tal carência se perpetuará até a morte?

O contexto de todo o sermão de Jesus, aponta para um aprofundamento da conduta espiritual. Comparativamente, Jesus irá sempre confrontar a superficialidade religiosa e exibicionista dos fariseus, com a legítima contrição daquele que se reconhece pobre de espírito e carente de Deus, e por isso pranteiam a fragilidade de suas almas. Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no Reino dos Céus.[1]

Ora, então o que é a justiça de Deus pela qual devemos ser famintos e sedentos. E que justiça é essa nossa, que excedendo à dos escribas e fariseus, me fará entrar no Reino dos Céus? Precisaremos dar uma olhadinha nisso primeiro, antes de prosseguirmos, pois esse conceito é muitíssimo importante para nossa reflexão.

Antes de mais nada é necessário desconstruir alguns conceitos atribuídos à justiça em nosso senso comum. O que entendemos como justiça está intimamente ligado ao conceito forense, em que fazer justiça é retribuir um ato ilegal e por isso injusto, com aplicação de uma punição estabelecida na lei, de modo que o infrator "pague" pelo seu ato de injustiça. Portanto, justiça em nosso contexto cotidiano mais simples, remete à punição de culpados, ou reequilíbrio de "desigualdades"; dois pra lá, dois pra cá. Porém não é esse o sentido bíblico de justiça. Nela, os termos tsedãqâ no Antigo Testamento, ou dikaiosyné no Novo Testamento, estão muito mais ligados ao conceito de recuperação de uma condição, ou um resgate. Como uma redenção do condenado ainda no corredor da morte do tribunal celestial.

Como pode um homem ser justo para com Deus?[2] - pergunta Jó, acusado de ter cometido alguma injustiça diante de Deus, que explicasse sua desventura. Mas não somos todos injustos? - seria uma continuação possível de sua argumentação. Sim, eu diria a Jó, certamente somos todos injustos perante Deus. Como está escrito: Não há justo, nem sequer um.[3] Então a punição é justa e adequada. E não há quem possa dela escapar. Pelo menos não com subterfúgios, barganhas, ou mesmo sacrifícios de adulação. Pois todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças como trapo da imundícia; e todos nós murchamos como a folha, e as nossas iniqüidades, como o vento, nos arrebatam.[4] Fizeste-me compreender que nem oferendas e sacrifícios desejaste; não requereste de mim holocaustos para remir meus pecados.[5] De modo que não só somos todos injustos, como também não há nada que possamos fazer por nós mesmos para nos resgatar da punição iminente.


“E creu Abrão no Senhor, e o Senhor imputou-lhe isto como justiça."
                      Gênesis 15:6  - JFA

É muito importante notar o que revela esse pequeno versículo, que mais tarde será citado no livro de Hebreus, já no Novo Testamento. Ele diz que a justiça não é realizada por Abraão, mas sim imputada a ele, atribuída, por um princípio de natureza e não de origem. Ele passa a estar justo (natureza), mas não foi ele que realizou tal justiça (origem). A quem pois então pertence a justiça? Pertence a Deus. E que justiça é essa? Essa justiça é o resgate do homem de sua condição de injusto, e que por injusto passível da punição.

Ora, quem é que depende da justiça de Deus? Todos. Mas a quem é que Deus a atribui? A quem crê. A quem reconhece que depende de Deus e sabe de sua pobreza espiritual. A quem pranteia essa condição de pobreza e chora. A quem aguarda o favorecimento imerecido de Deus, e não tenta agir por conta própria, se fazendo justo pelas próprias mãos. Por fim, a quem se encontra faminto e sedento por ela. Portanto a justiça de Deus é o resgate de quem crê. É o resgate do faminto e do sedento, fazendo dele um bem-aventurado.


1Justificados, pois, pela fé, tenhamos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, 2 por quem obtivemos também nosso acesso pela fé a esta graça, na qual estamos firmes, e gloriemo-nos na esperança da glória de Deus."
                      Romanos 5:1 e 2 - JFA

Eis, portanto, a finalidade última da justificação; o resgate da relação entre Criador e criatura. A restauração de uma relação genuína, renovada e legítima. Profunda e muito mais abençoadora. Insaciável e capaz de fazer dessa fome e dessa sede, uma motivação decisiva na direção de uma conduta justa, que exceda à falsidade e à fantasia pseudo devotada dos escribas e fariseus. Bem-Aventurado os famintos e sedentos dessa justiça; desse resgate. Bem-Aventurado os que se alimentam da vontade de Deus, e saciam suas sedes em poços abertos pela providência e pelo amor de Deus. Porque aquele que beber da água que eu (Jesus) lhe der nunca terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que jorre para a vida eterna.[6] Bem-Aventurado é aquele cuja iniquidade é perdoada, cujo pecado é coberto.[7]

É portanto dessa relação que temos fome e sede. É desse convívio íntimo que dependemos por predileção. Bem-Aventurado somos por marcharmos nesse ciclo virtuoso, em que a carência jamais se esgota, ainda que a fartura jamais se acabe.



[1]  Mateus 5:20
[2]  Jó 9:2
[3]  Romanos 3:10
[4]  Isaías 64:6
[5] S almos 40:6
[6]  João 4:14
[7]  Salmos 32:1