terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Esse discurso incomoda muita gente

Por Jânsen Leiros Jr.

Revisado e ampliado em 04/05/2024

 

 60 Muitos, pois, dos seus discípulos, ouvindo isto, disseram: Duro é este discurso; quem o pode ouvir? 61 Mas, sabendo Jesus em si mesmo que murmuravam disto os seus discípulos, disse-lhes: Isto vos escandaliza? 62 Que seria, pois, se vísseis subir o Filho do homem para onde primeiro estava? 63 O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida. 64 Mas há alguns de vós que não creem. Pois Jesus sabia, desde o princípio, quem eram os que não criam, e quem era o que o havia de entregar. 65 E continuou: Por isso vos disse que ninguém pode vir a mim, se pelo Pai lhe não for concedido.  

66 Por causa disso muitos dos seus discípulos voltaram para trás e não andaram mais com ele. 67 Perguntou então Jesus aos doze: Quereis vós também retirar-vos? 68 Respondeu-lhe Simão Pedro: Senhor, para quem iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna.”

João 6:60-68 - JFA

 

Duro é esse discurso! Os que ouviram as declarações de Jesus em uma sinagoga em Cafarnaum, ficaram atônitos tanto com o conteúdo daquele discurso, quanto com a maneira clara e aberta com que Jesus afirmava coisas difíceis, não tanto de serem entendidas, mas principalmente de serem aceitas. Ele acabara de dizer que era o pão vivo que desceu dos céus, e que quem dele comesse teria a vida eterna. E o pão que eu darei é a minha carne[1]. Ele anunciava seu sacrifício.

O discurso proferido por Jesus foi tão pesado e duro, que muitos voltaram atrás e o abandonaram, não mais fazendo parte da multidão que o seguia. Isso me faz lembrar o ditado popular que minha avó sempre dizia, quando reclamávamos de alguma coisa que ela tivesse dito: Não está satisfeito? Porta da rua é serventia da casa. Posso imaginar o que os discípulos sentiram ao ouvirem quereis vós também retirar-vos? Mas Pedro, então, responde com um dos textos mais desconcertantes e devocionais dos evangelhos. Senhor, pra quem iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna.

O Sermão do Monte proferido por Jesus apresenta características semelhantes. É um discurso de extremos, em que a lei de Moisés e seus desdobramentos são confrontados com exigências ainda severas e impensáveis; ouvistes o que foi dito... eu porém vos digo. Havia nessa fórmula uma aparência de antagonismo entre o que a lei determinava e o que Jesus discursava. Porém, Ele não só não a descumpre como a aprofunda. 

17 Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas cumprir. 18 Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, de modo nenhum passará da lei um só i ou um só til, até que tudo seja cumprido. 19 Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus.20 Pois eu vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus.”

Mateus 5:17-20 - JFA

Os chamados mestres da lei, que impunham aos seus seguidores pesados jugos e fardos de múltiplas ordenanças, haviam desdobrado a lei de Moisés em 613 regras sustentadas por 1.521 emendas[2]. Mas o que poderia parecer um aumento significativo de severidade em relação à lei primordial, era na verdade um intrincado novelo de pequenas burlas e concessões, que na prática facilitavam seu cumprimento, atendendo a dureza do coração do homem. Tais regras encorajavam o comportamento hipócrita de tais mestres, que se orgulhavam de cumprir à risca os mandamentos da lei, na verdade camuflados nas condições convenientes de suas aquiescências.

O que Jesus faz no Sermão do Monte, portanto, é aprofundar o sentido de justiça. Ele retira o foco do cumprimento da literalidade da lei e de sua compreensão legal, e o coloca na intenção do coração do homem. Ele flagra e expõe as atitudes aparentes, denunciando o comportamento tendencioso e hipócrita de fazer parecer, aquilo que na prática e em verdade não é ou nunca foi.

Diante do rigor proposto à lei, uma vez que Jesus eleva muito o sentido de justiça, quem poderia se julgar capaz de cumpri-la? Pois que lei é essa em que se deve orar pelo soldado romano que oprime os judeus, que abusa de seu poder e lhe toma os pertences? Sede perfeitos, assim como perfeito é o Pai que está nos céus![3] Ou ainda, vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e segue-me?[4] A conclusão dos seus ouvintes não poderia ser outra. Duro é esse discurso.

Quando Jesus aprofunda a lei, demonstrando que aquilo que importa para Deus não é a observância externa, mas antes a intenção do coração, ele torna o cumprimento dessa mesma lei ainda mais difícil, e por assim dizer impossível. Arranca o seu olho[5], oferece a outra face[6], entrega também a capa[7]. Qual o objetivo de demonstrar ser impossível cumprir a lei? Não vejo outra possibilidade, senão a de demonstrar que somente pela graça de Deus a humanidade pode ser aceita no Reino dos céus. Sim, porque jamais haverá qualquer ser humano capaz de dizer a Deus: Eu cumpri tudo o que deveria ser cumprido. Você tem a obrigação de me aceitar em seu Reino. A isso Jesus respondeu: Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o trouxer[8].

Assim, o Reino de Deus é constituído por pessoas salvas pela graça. A quem Deus amou primeiro. Ninguém tem nada do que se jactar, pois não há quem possa se declarar merecedor das recompensas que o Pai venha a lhe conceder. Pela graça sois salvos[9]. E ainda, a chuva cai sobre justos e injustos[10]

Portanto não teremos pela frente, ao estudarmos o Sermão do Monte, qualquer texto simples e de fácil compreensão. Menos ainda de direta aceitação ou imediata aplicação. Muito pelo contrário. Encontraremos pedras nesse sermão e tenho a impressão de que algumas poderão doer um pouco ao nos atingir em cheio. Algumas exigirão de nós redobrada atenção e cuidado. Outras tantas poderão nos atingir apenas de raspão. Mas de uma coisa tenho total convicção. Sairemos todos muito mais amadurecidos após escutarmos esse sermão. Porque a cada frase nos sentiremos completamente revirados pelo avesso, ainda que sensivelmente bem-aventurados.



[1]  João 6:48-51

[2] Os números "613" e "1521" referem-se às interpretações detalhadas e expansivas da Lei de Moisés pelos mestres da lei e fariseus na época de Jesus. Esses números não são mencionados explicitamente na Bíblia, mas são derivados de tradições e interpretações rabínicas.

A obra onde esses números são frequentemente mencionados é o "Talmude", uma coleção central de ensinamentos e comentários judaicos que inclui o "Mishná" e a "Guemará". No "Talmude", esses números são citados em discussões sobre a interpretação e aplicação prática da Lei de Moisés.

Embora esses números específicos possam não ser mencionados em todas as edições do "Talmude", a discussão sobre a extensão detalhada das leis e tradições é um tema recorrente na literatura rabínica. O "Talmude" é uma obra vasta e complexa que aborda uma variedade de assuntos legais, éticos e religiosos, e os números podem ser encontrados em contextos que discutem as nuances da lei judaica e sua aplicação na vida cotidiana.

 

[3]  Mateus 5:48

[4]  Mateus 19:21

[5]  Mateus 5:29

[6]  Mateus 5:39

[7]  Mateus 5:40

[8]  João 60:44

[9]  Efésios 2:8-9

[10]  Mateus 5:45

sábado, 23 de janeiro de 2016

Arrependei-vos! É com você mesmo que estou falando


Por Jânsen Leiros Jr.

Revisado e ampliado em 19/04/2024


“Sempre ouço pessoas dizerem que não se arrependem de nada do que fazem, querendo demonstrar, talvez, que não têm vergonha de seus erros ou que sabem assumir suas consequências. De certa forma até seria louvável, se isso não embutisse uma profunda relutância em admitir que, em algum momento do caminho, tomaram a direção errada, e que terão de retornar até lá e começar tudo outra vez, se é que pretendem chegar ao destino originalmente traçado.”


Antes de iniciarmos a audição do Sermão do Monte, será muito importante identificarmos algumas marcações cruciais do cenário em que ele se desenvolve. Não me refiro ao cenário físico, porque podemos encontrá-lo em qualquer manual bíblico ou em livros ilustrados, onde fotos retratam o possível local onde os discípulos ouviram o sermão. Refiro-me ao cenário religioso e nacional em que estavam inseridos os ouvintes de Jesus.

Israel amargava total distanciamento do objetivo que Deus havia traçado para o seu povo. A ideia de um povo santo separado para ser fiel a esta identidade, criado para que, tanto o seu pensamento quanto o seu comportamento refletissem a glória de Deus e revelasse sua imagem e semelhança, havia se perdido ao longo de muitos séculos.

Israel não quis ou não soube ser esse povo, ainda que se autodenominasse assim. Declinou da missão de ser um povo modelo de sujeição a Deus e do Seu Reino. Na verdade pediu ser igual às outras nações[1], assemelhando-se a elas na constituição política, nos hábitos sociais e até na prática religiosa. Não havia diferença relevante mais sim um modo de vida muito comum a todas as nações que o cercavam. Eram por assim dizer monólatras[2], mas cultuavam diversos deuses constituídos mentalmente, que lhes orientavam a conduta e as prioridades da vida.

Arrependei-vos[3]! Dizia Jesus, porque é chegado o Reino de Deus. Arrependei-vos, porque não foi para isso que foram constituídos povo de Deus, nação santa. Não foi para viver essa vida de puro ritualismo, formalidades religiosas, ativismo pretensiosamente piedoso que o Senhor os chamou desde Ur[4]. Arrependei-vos! Para que esse modelo superficial, conveniente e ritualista seja abandonado. Para assumirem uma vida mais relevante, efetiva e plena do domínio e do reinado de Deus.

Há um pequeno mas importante equivoco quanto ao sentido do arrependimento. Não se trata apenas de reconhecer-se fazendo coisas erradas e por convencimento tácito e racional, buscar ser diferente e melhor. O arrependimento é uma efetiva mudança de mente; metanóia[5], no grego. É um novo comportamento que nasce de um novo ser. De um nascido de novo[6], que anda em novidade de vida[7]. E esta mudança de mente não se circunscreve apenas aos ex-alguma coisa[8], mas até mesmo aos sempre assim[9]. Eu explico.

Se olharmos atentamente para a parábola do Filho Pródigo, perceberemos ali os dois tipos que de pessoas que são chamadas ao arrependimento. O primeiro, sabidamente um ex-alguma coisa, distante do pai vive de forma devassa dilapidando o recursos que o pai lhe antecipara. Se arrepende, faz o caminho de volta para casa e é recebido pelo pai. Mas o filho mais velho, um perfeito sempre assim, também não tinha com o pai qualquer relação que lhe conferisse minimamente usufruir de tudo aquilo que o pai generosamente poderia oferecer a ele; sua relação com o pai era protocolar. Ou seja, um filho estava distante da casa do pai. O outro estava dentro de casa. Porém tanto um quanto o outro se encontrava longe demais do pai. E o que isso quer dizer na prática? Quer dizer que todos pecaram[10].

Ao longo de todo o Sermão do Monte, diante de seus discípulos, uma considerável multidão, e tendo as pedras por testemunhas, Jesus colocará frente a frente a religiosidade vigente e a novidade de vida. O pietismo formal e arrogante dos que se acham imaculados, versus as lágrimas dos que se reconhecem carentes de misericórdia; ambos precisam de Deus. Porque outra vez olhando para os filhos da parábola, se um partiu por obstinada coragem de viver sem o pai, querendo independência e desprezando tudo o que o pai já havia sido e ainda poderia ser para ele, o outro, por covardia e timidez também não se aproximava sinceramente do pai, cumprindo suas regras, entendendo que por isso se faria eletivo de suas benesses. Um filho desprezava o pai abertamente. O outro o fazia veladamente. Arrependei-vos! É chegado o Reino de Deus[11].

. . .

Então Jesus se afastou para o monte e se distanciou das multidões. Preferiu ficar a sós, mas seus discípulos não deixaram, e logo se aproximaram. Sabendo que provavelmente teria algo a lhes dizer, eles sentaram ainda mais perto, guardando silêncio e esperando que ele o quebrasse. Então o Senhor, abrindo a boca, começou a ensinar-lhes dizendo[12]...



[1] 1 Samuel 8:19-20

[2] A "monolatria" é a crença ou prática religiosa em que se adora apenas um único deus, sem necessariamente negar a existência de outros deuses. É uma forma de monoteísmo, porém, ao contrário do monoteísmo estrito, que afirma a existência de um único Deus absoluto, a monolatria reconhece a existência de múltiplos deuses, mas escolhe adorar apenas um deles como supremo. Essa prática é encontrada em várias religiões antigas e culturas, como o antigo judaísmo, onde, embora acreditando na existência de outros deuses, os adoradores se comprometiam a adorar apenas o Deus de Israel.

[3] Mateus 4:17

[4] Gênesis 15:7

[5] Metanóia" (μετάνοια) é uma palavra grega que pode ser traduzida como "arrependimento" ou "mudança de mente". É formada pela junção de "meta", que significa "depois" ou "além", e "nóia", que se refere à mente ou ao pensamento. Portanto, "metanóia" implica uma mudança profunda de pensamento, uma transformação interior ou um arrependimento genuíno. Na literatura cristã, especialmente no Novo Testamento, o termo é frequentemente associado ao arrependimento dos pecados e à conversão espiritual.

[6] João 3:1-21

[7] Romanos 6:4

[8] "ex-alguma coisa" é uma expressão metafórica. É comumente usada para indicar uma mudança de status ou de identidade ao longo do tempo.

[9] Uma pessoa considerada um "sempre assim" é aquela que parece permanecer inalterada ao longo do tempo, que mantém certos comportamentos, características ou atitudes consistentes ao longo de sua vida ou em diferentes situações. Metaforicamente, essa expressão sugere que a pessoa é estável em suas características ou comportamentos, como se estivesse sempre na mesma condição, sem mudança significativa. Isso pode ser positivo ou negativo, dependendo do contexto em que é usado. Por exemplo, alguém que é descrito como um "sempre assim" pode ser visto como confiável e consistente, ou pode ser considerado inflexível e resistente à mudança.

[10] Romanos 3:23

[11] Lucas 10:9

[12] Mateus 5:2

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Conduzindo ao Monte - Uma introdução


Por Jânsen Leiros Jr.

Revisado e ampliado em 10/04/2024



“Toda vez que leio Mateus e chego ao final do capítulo 4, sabendo que iniciarei a leitura do Sermão do Monte, imagino-me como alguém sentado em uma sala de cinema, aguardando ansiosamente o início da sessão. As luzes se apagam, os últimos espectadores se sentam, alguns pedem silêncio. Então, o locutor anuncia: 'Vai começar o mais espetacular discurso de todos os tempos. Ajeite-se na poltrona, pois serão momentos de incômodas e desconcertantes confrontações. Caso tenha dificuldade em suportar o que vai ouvir, nas laterais da sala temos saídas de emergência...”


O Sermão da Montanha, como é conhecida a sequência de discursos de Jesus nos capítulos 5, 6 e 7 do Evangelho de Mateus, é sem dúvida um dos trechos mais lidos e comentados da Bíblia, e possivelmente o que exerce fascínio mais transcendente desde a sua realização. Ele parece ancorar a essência do evangelho, enquanto nos provoca a permanente auto avaliação do início ao fim.

 

Ao longo desses três capítulos, somos surpreendidos por uma avalanche de sensações, que se alternam entre inevitáveis arrependimentos e motivadora esperança. Em cada parágrafo, Jesus nos desmascara as conveniências religiosas e a superficialidade de nossos conceitos espirituais. Ele expõe feridas escondidas por trás de rituais que não conseguem alimentar a alma. Ele demonstra que somos fracos de vontade e que agimos quase sempre com pouco empenho e dedicação quando pretendemos algo. Mas Ele também aponta para uma vida possível de transformação e frutos, que melhorem o mundo em que habitamos, sem, contudo, perdermos a visão de que caminhamos rumo ao Reino de Deus, que é ao mesmo tempo nosso alvo e nosso modo de viver.

 

Nas conversas que teremos neste espaço dedicado exclusivamente ao Sermão e aos seus desdobramentos, tentaremos nos transportar para ouvi-lo como se estivéssemos lá, presentes, respirando o ar da Galileia, pisando as pedrinhas do caminho, protegidos à sombra da vegetação local, e em meio às multidões que acorriam para ouvir aquele que revolucionaria a existência humana revelando-nos o próprio Deus. Tentaremos sentir os ensinamentos de Jesus, evitando sempre que possível o comentário meramente técnico, ouvindo além de apenas ler o texto, lembrando sempre que as sensações produzem mais efeitos do que repetidas afirmações.

 

Haveremos de torcer o nariz para muitas passagens. Precisaremos reler algumas. Senão todas. Sentiremos contrariedades e inquietações, bem como aplaudiremos de pé e concordaremos com muitas ou apenas com algumas. Talvez sejamos sacudidos. Mexidos, remexidos e virados ao avesso. Seremos confrontados por Jesus e questionados por nós mesmos. Por alguns parágrafos nos tornaremos nossos próprios acusadores e juízes... O veredicto? Só teremos ao final.

 

Que o Pai, nesse Exercício Espiritual em sua Palavra, nos experimente na coragem, ousadia e perseverança, para que nossos corações se amadureçam no serviço e na honra para a glória de Deus.

 

Amém."