quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Bem-Aventurados os que se aventuram


Por Jânsen Leiros Jr.


3 Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus. 4 Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. 5 Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra. 6 Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos. 7 Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia. 8 Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus. 9 Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus. 10 Bem-aventurados os que têm sido perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. 11 Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós, por minha causa. 12 Alegrai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos profetas que existiram antes de vós. "
                      Mateus 5:3-12 - TB

É comum a literatura sapiencial se utilizar da expressão bem-aventurado, significando positivamente o estado em que tal pessoa se encontrará na sequência daquilo que vivencia no instante presente, ou daquilo que pratica naturalmente no exercício de sua vida cotidiana.


1 Bem-aventurado o varão que não anda segundo o conselho dos ímpios, nem se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores. 2 Antes, tem o seu prazer na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite. 3 Pois será como a árvore plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto na estação própria, e cujas folhas não caem, e tudo quanto fizer prosperará.
4 Não são assim os ímpios; mas são como a moinha que o vento espalha. 5 Pelo que os ímpios não subsistirão no juízo, nem os pecadores na congregação dos justos. 6 Porque o Senhor conhece o caminho dos justos; mas o caminho dos ímpios perecerá."
                      Salmos 1:1-6  - RC

Há diversos outros exemplos bíblicos, cuja lista colocaremos ao final desse artigo. Mas esse texto de Salmos permite conciliar todos os apontamentos e paralelos da expressão, sem que seja necessário utilizarmos outros textos em apoio.

Bem-Aventurados ou felizes, é a tradução mais adequada, no português, para a palavra grega Makarios, utilizada no início de cada uma das sentenças proferidas por Jesus. Makarios, porém, traz implícitos alguns sentidos etimológicos que nosso idioma e cultura não comportam, mas cujas ideias permitem que nossa aventura pelas bem-aventuranças seja mais empolgante e plena de possibilidades.

Não podemos esquecer que o grego é o idioma de uma nação extremamente religiosa e detentora de uma mitológica severa no sentido de atribuir, como expressão do pensamento humano, um significado que transcenda muito além do material. Cada expressão, portanto, sempre busca um contexto mais profundo e preciso, do que o que se apresenta no mundo aparente. Assim, Makarios pode ser entendido como felizes, mas não uma felicidade momentânea ou circunstante.  Antes tende a significar uma felicidade livre do peso do cotidiano, ou livre da vaidade humana, ou ainda livre do domínio das circunstâncias da vida. Uma felicidade, que, portanto, não retrocede porque aponta para a perenidade. Ora, se aponta para o sempre, logo está considerando que quem está livre do peso do cotidiano, bem como do domínio das circunstâncias da vida, só pode, por impossibilidade do contrário, estar morto. Ou seja, a felicidade das bem-aventuranças somente será possível ser vivenciada, quando a morte for uma realidade.

Tomando-se por correta a exposição acima, bem-aventurado é uma expressão que pode referir-se tanto a uma condição futura que será atingida em sequência à presente existência, ou a um estado de morte já experimentada em vida, pois no contexto do evangelho, morremos com Cristo. Não estamos mais sujeitos ao domínio das circunstâncias da vida ou das solicitudes de nossa existência cotidiana. Estamos livres das vaidades das coisas, pois conhecendo a Verdade[1], esta nos libertará.

Ora, é por isso mesmo que o salmista chama de bem-aventurado aquele que não se deixa levar pelos seus circunstantes, mas em vez disso se envolve e se dedica ao conhecimento de Deus e de sua justiça. As coisas envolvidas com essa vida já não têm para ele um apelo de urgência ou primazia. São como a palha que o vento carrega, coisa leve e sem importância, rejeitada quando nos ocupamos em reter apenas o que essencialmente importa. Apenas o que é relevante.

É importante notar, no entanto, que tanto o salmista quanto Jesus chama de bem-aventurado, adjetivando o indivíduo que vivencia determinada realidade, e não pelo que ele pratica ou pela forma com que vive. Bem-Aventurado é pelo que lhe será dado, ou permitido por consequência. Ou seja, ninguém é bem-aventurado por ser humilde de espírito, mas sim porque deles é o reino dos céus. Bem como o bem-aventurado do salmista não o é porque medita na lei do Senhor, mas antes porque será como árvore plantada junto ao rio que dará muitos frutos. A bem-aventurança, portanto, adjetiva a condição final e não o estado intermediário que leva àquela, pois este estado intermediário nem sempre será confortável ou interessante como modelo de vida. Ou alguém considera prazeroso, apenas por exemplo, ser perseguido, injustiçado ou caluniado?[2]

De certa forma, as bem-aventuranças como proferidas por Jesus, e aí diferentemente do salmista, elenca não uma lista de atitudes que seus discípulos devem exercitar para um determinado objetivo, mas sim características percebidas naqueles que já não estão sob o domínio do peso do cotidiano, mas que estarão mortos com ele, Jesus[3]; os humildes de espírito, os chorosos, os mansos, os famintos e sedentos por justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os pacificadores, os perseguidos, os caluniados e também os injustiçados.

É importante ressaltar, como já dissemos anteriormente, que o Sermão da Montanha é o primeiro discurso de desconstrução do modelo de vida elaborado pelos judeus, que tinham na prosperidade social e financeira sua meta primordial, não muito distantes do orgulho cultural, religioso e nacional. Tudo o que fosse socialmente entendido como desfavorável, jamais poderia ser aceito como benéfico ou procedente, capaz de traduzir no tempo uma vantagem ou recompensa positiva vindoura. E é exatamente por isso que Jesus inicia o discurso com as bem-aventuranças. No seu Reino, tudo seria diferente e porque não dizer, o contrário. Vida recompensa da morte.

As bem-aventuranças, portanto, apontam para o restante do sermão. Elas o introduzem, criando a sustentação para o conceito de aprofundamento da justiça, que deve exceder à formalidade legalista e aparente dos escribas e fariseus. Só sendo manso é possível entregar a capa ao que a toma de você, e ainda lhe oferecer também a túnica. Bem como oferecer uma face quando a outra já está vermelha e ardendo de por uma agressão, só é possível a quem é misericordioso e humilde de espírito. Só sendo um pacificador, é possível calar diante de calúnias e injustiças, que por si só já legitimariam qualquer reação loquaz, agressiva ou mesmo de defesa da honra.

Bem-Aventurados somos, portanto, por vivermos a melhor e mais completa de todas as aventuras. A aventura de termos corações transformados. De vivermos mortos, porém cheios de vida abundante. De termos por promessa uma existência repleta de tudo aquilo que hoje nos é carência e escassez. Usando o que não nos pertence e andando por terras estrangeiras em que somos peregrinos[4].

Vivendo em marcha, o aqui e agora, vivemos na esperança do ali e depois. Somos convictos do que não vemos, esperando contra a esperança, pois nosso é o Reino dos Céus. Em Deus somos sempre, vivo ou mortos, bem-aventurados.



[1]  João 8:32
[2]  Mateus 5:10 e 11
[3]  Romanos 8:16-17; Mateus 16:24-25
[4]  1 Pedro 2:11

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