Por Jânsen Leiros Jr.
“Bem-aventurados os
misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia."
Mateus
5:7 - JFA
Seguindo nosso passeio pelo Sermão do
Monte, chegamos à quinta bem-aventurança. E como passamos um tempo longo desde
o último texto, penso ser importante recuperar alguns princípios que entendemos
determinantes, na compreensão do que podemos considerar uma introdução ao discurso
desse sermão.
Podemos começar relembrando que as
bem-aventuranças formam um conjunto harmônico, que apresenta características
correlatas da personalidade transformada, de todo aquele que sinceramente se
devota a Deus. Não se trata de um faça isso logo aquilo, tão presente na
literatura positivista dos mecanismos de autoajuda, mas sim de uma apresentação
abrangente do caráter daquele que está em marcha para o Reino do Céus. É, na
prática, a tradução desse caráter em atitudes relativas a si mesmo, dirigidas
em benefício de terceiros, e por fim, que dizem respeito a seu posicionamento
social diante daquilo que crê.
Se lembrarmos bem, ou se alguém preferir
recorrer aos textos anteriores, as primeiras quatro bem-aventuranças diziam
respeito àquilo que o sincero e devotado discípulo pensa e faz, de si e consigo
mesmo. Ou seja, nas primeiras quatro bem-aventuranças o cristão é tanto o
agente, quanto o beneficiado de seu entendimento e consequentes atitudes. Mas
nessa e nas duas próximas beatitudes, haverá um benefício estendido a
terceiros. Uma atitude cujo o bem se amplia no foco do que é correto e probo
realizar, deixando assim a mensagem de que tudo o que melhora em cada um de nós
individualmente, precisa refletir e se traduzir em bem aos outros também.
Tais características introdutórias,
portanto, são reveladoras à medida que coloca a relação do homem consigo mesmo,
com os outros, e com Deus, na base de todo o ensinamento que se desenvolverá em
seguida, definindo-as como a expressão prática da vida cotidiana de uma pessoa
piedosa.
Mas por que razão os misericordiosos
seriam bem-aventurados? Que vantagens a misericórdia poderá trazer ao
misericordioso. A misericórdia seria uma moeda de troca? E que valor teria? De
que adianta ao ser humano agir com misericórdia, se o mundo real pertence aos
implacáveis? Vamos pensar juntos sobre tudo isso.
Podemos começar tentando entender
misericórdia, como palavra sempre presente no contexto religioso daqueles dias.
Ou seja, a palavra utilizada por Jesus estava tão inserida no contexto social
judaico, que nenhuma dúvida causou aos discípulos que o ouviam naquele
instante. E como não é nosso objetivo aqui nos aprofundarmos muito nos
significados possíveis da palavra na tradição e na literatura judaica,
ficaremos com o sentido mais geral e mais amplamente utilizado; o de
benevolência da parte ofendida, à parte que descumpriu um pacto ou uma aliança.
Uma graça. Portanto, no sentido prático, misericórdia é um sentimento de
bondade, que se deve traduzir em atitude bondosa. Mais tarde Paulo relacionará
a bondade como fruto do Espírito[1].
É importante ressaltar, que Jesus não
está estabelecendo uma condição; quem agir com misericórdia receberá
misericórdia. Se assim fosse, a misericórdia de Deus para conosco dependeria de
nossa atitude, e assim neutralizaria a graça, pois a alcançaríamos por nossos
próprios esforços. Mas antes, a exemplo das características anteriormente
relacionadas, é próprio do cristão piedoso agir com misericórdia, por está em
marcha com aqueles que receberão misericórdia. Ou seja, o cristão deve exercer
misericórdia por gratidão livre e espontânea[2],
dada a sua consciência da misericórdia de Deus que o alcançou.
Entre outros tantos exemplos de bondade
em exercício na narrativa bíblica, há dois pelos quais tenho particular
encanto; o bom samaritano[3]
e a mulher adúltera[4].
Entendo que esses dois acontecimentos exemplificam profundamente o significado
desse sentimento, esclarecendo respectivamente, a misericórdia como ato de
bondade, e a misericórdia como ato de perdão. No primeiro, o samaritano se
compadece do estado em que se encontra aquele homem à margem da estrada. Sem
cuidado e abandonado ali, ele certamente iria morrer. E mesmo com todos os seus
importantes afazeres, decide priorizar o cuidado pleno daquele homem, sem medir
custos. Um ato efetivo de compaixão e bondade. No segundo, há um contraponto
particularmente especial; não seria ilegal apedrejar aquela adúltera. A lei
mosaica lhes autorizava a tanto. Havia ali um delito cujo castigo era o
apedrejamento até a morte. Jesus então apresenta-lhes a misericórdia como a
alternativa benevolente, de quem abandona o direito, em benefício do pecador.
Um ato de compaixão e misericórdia.
Além desses dois exemplos, a Epístola
aos Hebreus apresenta Jesus como o sumo sacerdote misericordioso[5].
E tal misericórdia ganha consistência, na medida em que Jesus, a exemplo de nós
seres humanos, passou por tudo o que passamos, sabendo na carne, as
dificuldades e carências que sofremos em nossa vida real e cotidiana. Ele se compadece
de nós, embora o pecado nos faça merecedores do castigo de morte. Onde o pecado
abundou, superabundou a graça[6].
A bíblia nos ensina que o amor cobre uma
multidão de pecados. Isso nos reporta a uma situação confrontante com a
realidade que vivemos em nossos dias. Vivemos tempos difíceis, em que somos
tocados por um ímpeto de vingança pessoal e social. Talvez motivado por
corações endurecidos, talvez pela falta de ação do Estado, ou as duas coisas
somadas, diariamente flagramos casos em que a vingança, travestida de justiça
pelas próprias mãos, tem feito vítimas nas mais diversas camadas e grupos
sociais. E o que se instaura, na ausência da bondade, da misericórdia e da
compaixão, é a maldade, a indiferença e a intolerância. Afinal, por se
multiplicar a iniquidade, o amor de muitos esfriará[7].
Misericórdia quero e não sacrifício[8].
Os fariseus se escandalizavam porque Jesus vivia rodeado por pessoas que os
fariseus consideravam impuras, e portanto contamináveis. Manter-se
"puro" segundo a tradição judaica, requeria restringir determinados
contatos e convívios, principalmente com aqueles que estavam à margem daquela
sociedade. Acontece que a falta de um sentimento de misericórdia, na essência
da relação com Deus, torna nula toda a ritualidade religiosa. E isso incomodava
profundamente o próprio Deus, como relatado no Antigo Testamento[9].
Um cristão sem um coração misericordioso, é um cristão vazio do sentimento mais
básico em um coração transformado; o amor[10].
A verdade é que um coração
misericordioso é uma referência da bondade e do amor de Deus no mundo. E nós,
cristãos, não podemos deixar de ter essa marca. Numa realidade mundial onde o
ódio, a indiferença e a intolerância dominam as atitudes e reações mais
instintivas, a bondade e a misericórdia de Deus precisa estar traduzida em
nossas relações, no compadecimento com todos, acolhendo e cuidando daqueles a
quem o Senhor nos envia.