Por Jânsen Leiros Jr.
Revisado e
ampliado em 19/04/2024
Antes
de iniciarmos a audição do Sermão do
Monte, será muito importante identificarmos algumas marcações cruciais do
cenário em que ele se desenvolve. Não me refiro ao cenário físico, porque
podemos encontrá-lo em qualquer manual bíblico ou em livros ilustrados, onde
fotos retratam o possível local onde os discípulos ouviram o sermão. Refiro-me
ao cenário religioso e nacional em que estavam inseridos os ouvintes de Jesus.
Israel
amargava total distanciamento do objetivo que Deus havia traçado para o seu
povo. A ideia de um povo santo separado para ser fiel a esta identidade, criado
para que, tanto o seu pensamento quanto o seu comportamento refletissem a
glória de Deus e revelasse sua imagem e semelhança, havia se perdido ao longo
de muitos séculos.
Israel
não quis ou não soube ser esse povo, ainda que se autodenominasse assim. Declinou
da missão de ser um povo modelo de sujeição a Deus e do Seu Reino. Na verdade
pediu ser igual às outras nações[1],
assemelhando-se a elas na constituição política, nos hábitos sociais e até na
prática religiosa. Não havia diferença relevante mais sim um modo de vida muito
comum a todas as nações que o cercavam. Eram por assim dizer monólatras[2],
mas cultuavam diversos deuses constituídos mentalmente, que lhes orientavam a
conduta e as prioridades da vida.
Arrependei-vos[3]!
Dizia Jesus, porque é chegado o Reino de
Deus. Arrependei-vos, porque não
foi para isso que foram constituídos povo de Deus, nação santa. Não foi para
viver essa vida de puro ritualismo, formalidades religiosas, ativismo
pretensiosamente piedoso que o Senhor os chamou desde Ur[4].
Arrependei-vos! Para que esse modelo
superficial, conveniente e ritualista seja abandonado. Para assumirem uma vida
mais relevante, efetiva e plena do domínio e do reinado de Deus.
Há
um pequeno mas importante equivoco quanto ao sentido do arrependimento. Não se
trata apenas de reconhecer-se fazendo coisas erradas e por convencimento tácito
e racional, buscar ser diferente e melhor. O arrependimento é uma efetiva
mudança de mente; metanóia[5],
no grego. É um novo comportamento que nasce de um novo ser. De um nascido de
novo[6],
que anda em novidade de vida[7].
E esta mudança de mente não se circunscreve apenas aos ex-alguma coisa[8],
mas até mesmo aos sempre assim[9].
Eu explico.
Se
olharmos atentamente para a parábola do Filho Pródigo, perceberemos ali os dois
tipos que de pessoas que são chamadas ao arrependimento. O primeiro,
sabidamente um ex-alguma coisa,
distante do pai vive de forma devassa dilapidando o recursos que o pai lhe
antecipara. Se arrepende, faz o caminho de volta para casa e é recebido pelo
pai. Mas o filho mais velho, um perfeito sempre
assim, também não tinha com o pai qualquer relação que lhe conferisse
minimamente usufruir de tudo aquilo que o pai generosamente poderia oferecer a
ele; sua relação com o pai era protocolar. Ou seja, um filho estava distante da
casa do pai. O outro estava dentro de casa. Porém tanto um quanto o outro se
encontrava longe demais do pai. E o que isso quer dizer na prática? Quer dizer
que todos pecaram[10].
Ao
longo de todo o Sermão do Monte, diante de seus discípulos, uma considerável multidão,
e tendo as pedras por testemunhas, Jesus colocará frente a frente a religiosidade
vigente e a novidade de vida. O pietismo formal e arrogante dos que se acham
imaculados, versus as lágrimas dos que se reconhecem carentes de misericórdia;
ambos precisam de Deus. Porque outra vez olhando para os filhos da parábola, se
um partiu por obstinada coragem de viver sem o pai, querendo independência e
desprezando tudo o que o pai já havia sido e ainda poderia ser para ele, o
outro, por covardia e timidez também não se aproximava sinceramente do pai,
cumprindo suas regras, entendendo que por isso se faria eletivo de suas benesses.
Um filho desprezava o pai abertamente. O outro o fazia veladamente. Arrependei-vos! É chegado o Reino de Deus[11].
.
. .
Então
Jesus se afastou para o monte e se distanciou das multidões. Preferiu ficar a
sós, mas seus discípulos não deixaram, e logo se aproximaram. Sabendo que
provavelmente teria algo a lhes dizer, eles sentaram ainda mais perto,
guardando silêncio e esperando que ele o quebrasse. Então o Senhor, abrindo a boca, começou a ensinar-lhes dizendo[12]...
[1] 1 Samuel
8:19-20
[2] A
"monolatria" é a crença ou prática religiosa em que se adora apenas
um único deus, sem necessariamente negar a existência de outros deuses. É uma
forma de monoteísmo, porém, ao contrário do monoteísmo estrito, que afirma a
existência de um único Deus absoluto, a monolatria reconhece a existência de
múltiplos deuses, mas escolhe adorar apenas um deles como supremo. Essa prática
é encontrada em várias religiões antigas e culturas, como o antigo judaísmo,
onde, embora acreditando na existência de outros deuses, os adoradores se
comprometiam a adorar apenas o Deus de Israel.
[3] Mateus
4:17
[4] Gênesis
15:7
[5]
Metanóia" (μετάνοια) é uma
palavra grega que pode ser traduzida como "arrependimento" ou
"mudança de mente". É formada pela junção de "meta", que
significa "depois" ou "além", e "nóia", que se
refere à mente ou ao pensamento. Portanto, "metanóia" implica uma
mudança profunda de pensamento, uma transformação interior ou um arrependimento
genuíno. Na literatura cristã, especialmente no Novo Testamento, o termo é
frequentemente associado ao arrependimento dos pecados e à conversão
espiritual.
[6]
João 3:1-21
[7]
Romanos 6:4
[8]
"ex-alguma coisa" é uma expressão metafórica. É comumente usada para
indicar uma mudança de status ou de identidade ao longo do tempo.
[9]
Uma pessoa considerada um "sempre assim" é aquela que parece
permanecer inalterada ao longo do tempo, que mantém certos comportamentos,
características ou atitudes consistentes ao longo de sua vida ou em diferentes
situações. Metaforicamente, essa expressão sugere que a pessoa é estável em
suas características ou comportamentos, como se estivesse sempre na mesma
condição, sem mudança significativa. Isso pode ser positivo ou negativo,
dependendo do contexto em que é usado. Por exemplo, alguém que é descrito como
um "sempre assim" pode ser visto como confiável e consistente, ou
pode ser considerado inflexível e resistente à mudança.
[10] Romanos
3:23
[11] Lucas
10:9
[12] Mateus
5:2
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