terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Ser manso exige força e coragem. Vai encarar?


Por Jânsen Leiros Jr.


“Bem-Aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra."
     Mateus 5:5 - JFA


1 Não te indignes por causa das más pessoas; nem tenhas inveja daqueles que praticam a injustiça. 2 Pois eles em pouco tempo secarão como o capim, e como a relva verde logo murcharão. 3 Confia no SENHOR e pratica o bem; assim habitarás em paz na terra e te nutrirás com a fé. 4 Deleita-te no SENHOR, e Ele satisfará os desejos do teu coração. 5 Entrega o teu caminho ao SENHOR, confia nele, e o mais Ele fará. 6 Ele exibirá a tua justiça como a luz, e o teu direito como o sol ao meio-dia. 7 Aquieta-te diante do SENHOR e aguarda por Ele com paciência; não te irrites por causa da pessoa que prospera, nem com aqueles que tramam perversidades. 8 Deixa a ira e abandona o furor; não te impacientes. Não te inflames, pois assim causarás mal a ti mesmo. 9 Pois os malfeitores serão exterminados, mas os que depositam sua esperança no SENHOR herdarão a terra."
     Salmos 37:1-9 - KJA

A terceira bem-aventurança ecoa o livro de Salmos em seu capítulo 37, que é um hino da literatura sapiencial hebreia. Mas ao acrescentar a repetição de sua essência entre as palavras iniciais do sermão do monte, bem como incluir tal menção entre os que choram e os que têm fome e sede de justiça, Jesus dá novo vigor às pretensões de Davi ao dizer descansa no Senhor e espera n'Ele.

Alguns estudiosos sugerem que a mansidão é um ato de gentileza ou de cordialidade extrema, motivado por uma abnegação dos impulsos naturais de querer chamar a atenção para si, ou fazer valer os próprios direitos. Tal entendimento pode ter influenciado algumas traduções, que em lugar de manso utilizaram humildes. Mas me parece que essa perspectiva é limitada, se utilizarmos o texto de salmo como pano de fundo, e muito mais se contextualizarmos a expressão em meio as bem-aventuranças, exatamente como se encontra.

Seguindo a fluidez do texto, vemos que os pobres, aqueles que se percebem carentes de Deus e de seu socorro, que se entendem sem recursos, choram sua condição de penúria espiritual. Lamentam e pranteiam não só como necessitados e dependentes, mas também e principalmente porque lamentarão sempre e prantearão até o fim. Então, diante dessa condição e encarando tal realidade, o indivíduo pode escolher; ou se rebela, tentando tomar sobre os próprios ombros o encargo de mudar sua sorte, já que tantos outros vivem de forma diferente, ou decide, por confiança insofismável, esperar em Deus e em sua justiça. O manso é aquele que decide confiar em Deus e esperar d'Ele a solução do pleito, embora se encontre em uma circunstância desfavorável.

O indivíduo olha para um lado e vê a injustiça se prolongando em dias. Olha para outro, e vê os malfeitores enriquecendo às custas de sua perversidade. É claro que lhe passa pela cabeça que manter-se probo e reto pode lhe privar de uma condição melhor para si mesmo e os que dele dependem para existir; sua família por exemplo. Mas o salmista adverte, não inveje o homem injusto. Mais ainda. Confia e espera em Deus; descansa. Os que esperam herdarão a terra.

Notem que essa promessa é contundente mas conflitante, principalmente no contexto de um povo subjugado pelo domínio romano. Receber a terra por herança, equivale a recebê-la por direito sem precisar lutar por ela. Logo os judeus, acostumados a guerras e a se defenderem de nações inimigas por todos os lados. O que Jesus está propondo é larguem suas armas. Não confiem nelas para estabelecerem a pretensa justiça. Se dependem de Deus e choram por suas sortes, dependam e chorem até o fim, sendo mansos e confiantes de que é Ele que os fartará daquilo de que são carentes. Não reajam, mas antes confiem.

Falar aqui em mansidão tinha como propósito a sustentação do restante do discurso. Oferecer a outra face, caminhar duas milhas se obrigado a uma, não são atitudes senão de mansidão. Atitudes daqueles que escolhem ser mansos, em vez de agirem em seu próprio favor. Mais tarde Jesus irá se oferecer como cordeiro manso ao sacrifício. Ele será manso diante da guarda que o capturará no Getsêmani, diante do Sinédrio reunido para julgá-lo, e diante de Pilatos que o interrogará. Por todo o seu martírio, Jesus exercerá convicto sua mansidão, tendo em foco o propósito de Deus em tudo que ocorrerá à frente, e a providência divina em seu socorro final. Afinal, ele será o primeiro entre muitos que herdarão a terra.

Não é sem razão que Paulo por vezes evidenciou a cruz como o modo de martírio de Jesus. Não que a cruz como objeto ou modelo de execução tivesse em si qualquer distinção que a fizesse diferente das demais. Nem o objeto e nem o modelo, pois como Jesus, milhares de outros judeus foram executados na cruz. Em sua própria crucificação, Jesus se fez acompanhar de outros dois executados da mesma forma, e por outras razões. Mas o que fica evidente na cruz é a exposição da condenação, a vergonha, ou ignomínia, como aparecerá em algumas traduções. Uma vergonha por aquilo que não lhe cabia, uma condenação injusta pela qual nada fez de si mesmo. Antes a sofreu por mim e por você.

Jesus exerceu a mansidão por todo aquele evento. A cada chicotada, a cada afronta dos soldados romanos, e a cada impropério dito pelos passantes a que não reagia, ele exercia a mansidão. Nem mesmo diante de Pilatos, que chamou para si a autoridade de liberta-lo ou de prendê-lo. A este Jesus respondeu mansamente que nenhuma autoridade ele teria, se de Deus não a tivesse recebido, demonstrando claramente que não exerceria seu poder de reação, mas entregar-se-ia irrevogavelmente ao propósito de Deus. Ele foi obediente até a morte, e morte de cruz[1].

A mansidão é, portanto, o ato positivo em direção à confiança. É uma ação realizadora. Alguns podem confundir tal esperança com um ato covarde ou de não enfrentamento do inimigo. Mas não é nada disso. O manso é antes aquele que por confiança e esperança guerreia contra si mesmo, para em vez de agir precipitadamente em seu favor, aguardar em Deus, certo de seu cuidado e de sua providência. O manso não é um covarde que teme a reação. É aquele que corajosamente espera confiante no amor de Deus. Sua satisfação e o seu prazer está em esperar pela ação do Pai. Os mansos, sem luta, herdarão a terra.




[1]  Filipenses 2:8

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Um choro além das lágrimas


Por Jânsen Leiros Jr.


“Bem-Aventurados os que choram, porque eles serão consolados."
     Mateus 5:4 - KJA


“Bem-Aventurados os lamuriantes, porque eles serão consolados."
     Mateus 5:4 - NT Interlinear

Há uma relevante ligação entre a primeira e a segunda bem-aventurança, revelando uma decorrência da segunda em razão da primeira. Ou seja, os que choram, choram porque se reconhecem pobres. Por não terem espíritos altivos, são sensíveis ao convencimento do Espírito Santo. Ao reconhecerem suas condições de carência diante de Deus, suas fragilidades e inevitável penúria, lamentam e pranteiam suas realidades, produzindo um choro que vai além de suas próprias lágrimas.
                                                                                                 
No texto de Mateus, aparece a palavra penteō, que significa pranto, lamento ou tristeza. Sentimentos que estremecem a alma, nos abatendo e perturbando a autoconfiança. O choro, o derramar de lágrimas apenas, em si mesmo nada é. Somos capazes de chorar de tanto rir, por uma alegria imprevista, ou até mesmo por uma cena romântica. Portanto, ao dizer que os que lamentam ou pranteiam serão consolados, Jesus está se referindo àqueles cujo derramar de lágrimas vem das profundezas de almas lamuriantes, sinceramente tristes e emocionalmente abalados.

Ora, qualquer ser humano pode passar por uma tristeza muito forte, e ficar por conta disso profundamente abalado. Se alguém ainda não passou, passará com certeza. Seja por um amor não correspondido, pela reprovação em um concurso, ou mesmo pela perda de um ente querido, todos um dia sentimos uma dor mais aguda, uma dor mais doída, que atravessa o peito, sangrando o coração com lágrimas sentidas. Sofremos perdas; e por elas as almas sofridas se doem e choram.


35 Jesus chorou. 36 Disseram então os judeus: Vede como o amava."
     João 11:35-36 - JFA

Mas não obstante a legitimidade dessas lágrimas, por mais que elas surjam de corações doídos e sinceros, seria por motivações como essas que Jesus diz serem bem-aventurados os que choram? Seriam essas lágrimas, um sinal claro de que haverá consolo no Reino dos céus. Tais lamentos são capazes de transformar as pessoas, salvando-as de si mesmas? Pergunto, porque por mais doídas que sejam suas motivações, nenhuma delas podem produzir reconhecimento da pobreza espiritual; se muito, a constatação de nossa pequenez e finitude diante de Deus e de sua bondade.

Creio que Jesus está falando de um lamento que receberá consolo definitivo apenas no porvir. De um conforto que se concretizará, não no aqui e agora, mas no ali e além de nossas vidas no Reino dos céus. Um consolo eterno para toda e qualquer lágrima doída de tristeza, lamento e pranto, causados pela pobreza espiritual e pelo estado de afastamento de Deus, do qual toda a humanidade padece. Portanto, nosso choro não se extingue nessa vida. É ele um lamento que perdurará latente, enquanto o coração dos que estão em marcha pulsarem no peito experimentado em dores. É um pranto que mesmo sem lágrimas, ecoará dentro da alma piedosa e contrita diante de Deus, enquanto caminharmos como peregrinos em terra estranha.


“Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, apedrejas os que a ti são enviados! quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e não o quiseste!"
     Mateus 23:37 - JFA

Um paralelo com o choro dos que sofrem por suas condições sócio econômicas é inevitável, uma vez que os pobres são, em sua esmagadora maioria, as principais vítimas diretas ou indiretas de toda maldade e vilania humana. O contraste em Lucas com os "que agora riem", aponta para o fato de que, se há os que se lamentam, há os que se alegram em meio às mesmas condições, não obstante dividirem o mesmo cenário mundial de horrores e devastação moral. O desejo de falar sobre isso é inevitável. Mas resistindo a tal impulso, preferirei fugir desse contexto, ainda que ele não me seja menos tocante. Pelo menos por agora.

Relativamente ao discurso do Sermão do Monte, gosto de pensar que os que não lamentam, os que não sofrem e portanto não choram, não o fazem pura e exclusivamente porque, para eles, pouco importa tanto o estado de falência da humanidade afastada de Deus, quanto suas próprias condições espirituais, que segundo seus próprios juízos e racionalizações, encontram-se extremamente adequadas e convenientes a interesses oportunos. A autoconfiança que produz a falsa sensação de segurança, permeia a altivez dos que agora riem ou não pranteiam, produzindo em si mesmos, a recompensa de suas soberbas. Loucos! Hoje lhes pedirão as almas. E tudo sobre o que repousam suas seguranças, para quem será?


9 Agora folgo, não porque fostes contristados, mas porque o fostes para o arrependimento; pois segundo Deus fostes contristados, para que por nós não sofrêsseis dano em coisa alguma.10 Porque a tristeza segundo Deus opera arrependimento para a salvação, o qual não traz pesar; mas a tristeza do mundo opera a morte."
     2 Coríntios 7:9-10 - JFA

É por isso que me assustam os defensores do evangelho da autoajuda, das palavras de ordem, dos gritos de guerra e das declarações de afirmação de prosperidade e de alegrias blindadas. O cristão, ainda que feliz por sua esperança e confiança da sua salvação, tem muito o que lamentar e prantear, não chorando um choro apenas teatral, e por isso incapaz de lhe arrancar de sua inércia. É preciso vertemos lágrimas que nos impulsionem a testemunhar e a pregar o evangelho da cruz, do arrependimento, e da conversão a Deus a ao seu Cristo.

O cristão precisa manter-se livre das amarras de uma vida sedutora, e da ideia de que o pretenso bem estar sócio econômico de sua vida, testemunhará a favor do poder do evangelho. Vidas transformadas são o maior e melhor testemunho que podemos oferecer ao mundo. Devemos nos tornar pessoas que, cheias do amor de Deus, pranteiam com aqueles que choram suas angústias e desesperanças, em meio a um mundo que insiste em nos oprimir e a nos presentear com constantes e variados momentos de tristeza, nos confrontando com a realidade lamentável de que o mundo jaz no maligno.


Quanto mais pretendemos ter, esperando que essas coisas nos consolem, mais presos ficaremos a um estado de coisas que nos deveriam ser motivo de pranto e dor. Vejo que na verdade os desejamos profunda e visceralmente. Será que na verdade, o que queremos mesmo é sermos aqueles que agora riem?

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

O que possui o pobre?


Por Jânsen Leiros Jr.


“Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos Céus."
     Mateus 5:3 - KJA


16 Não te deleitas em sacrifícios nem te comprazes em oferendas, pois se assim fosse, eu os ofereceria. 17 O verdadeiro e aceitável sacrifício ao Eterno é o coração contrito; um coração quebrantado e arrependido jamais será desprezado por Deus!"
     Salmos 51:16-17 - KJA


1 Eis que o Espírito de Yahweh, o Soberano, está sobre mim, porque o SENHOR me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres. Enviou-me para cuidar dos que estão com o coração quebrantado, proclamar liberdade aos cativos e libertação do mundo das trevas aos prisioneiros da escuridão; 2 para anunciar a todos o ano aceitável de Yahweh, e o Dia da vingança do nosso Deus; para consolar todos os que andam tristes,"
     Salmos 61:1-2 - KJA

Aqui começamos a pensar cada uma das bem-aventuranças ditas por Jesus no Sermão do Monte. E é muito relevante que ele tenha começado exatamente pelo pobre, que em sua condição, além de sofrer pelas circunstâncias de seu estado de penúria, ainda era marginalizado socialmente, deixado à parte do convívio social e do movimento econômico. Não havia nada de bom em ser pobre.

Entre os diversos sentidos pelos quais uma pessoa poderia ser chamada pobre, no entanto, Jesus complementa de espírito, isolando total e completamente a possibilidade do cunho sócio econômico em sua afirmação. Os pobres de espírito, portanto, não são os mesmos que carecem do auxílio e dos recursos de terceiros para viver. Não são os mendigos que suplicam ajuda, para terem atendidas suas necessidades mais básica. Não são esses os pobres de espírito, mas não significa também que não o possam também ser. O que se pretende, contudo, é dissociar uma condição da outra, pois não são determinantes entre si.

O conceito de pobre em espírito é mais facilmente entendido para o judeu do que para o grego, o que talvez explique, em certa medida, a diferente narrativa de Mateus e Lucas para o mesmo discurso, pois esse último em Lucas 6:20, utiliza apenas a palavra pobre. O judeu acostumara-se com circunstâncias espirituais de aflição, de angústia e de dependência do socorro divino. Tais circunstâncias o levaram a perceber que esses estados lhes faziam pobres e fracos, pois extremamente necessitados, senão de dinheiro ou recursos, do socorro de Deus.


“Todos os meus ossos dirão: Ó Senhor, quem é como tu, que livras o fraco daquele que é mais forte do que ele? sim, o pobre e o necessitado, daquele que o rouba."
     Salmos 35:10 - KJA

Ao dissociar a condição econômica e social do indivíduo de sua condição espiritual, Mateus universaliza a condição de pobre a toda a humanidade, e individualmente a todo aquele que se entende carente do socorro e do cuidado de Deus. E de novo em Lucas 18:13 essa ideia retorna, quando o publicano sequer ousa levantar os olhos ao fazer sua oração com o coração contrito; sê propício a mim, pecador. Seu quebrantamento e contrição eram flagrantes. Ele era um pobre em espírito.


“Então os que dentre vós escaparem se lembrarão de mim entre as nações para onde forem levados em cativeiro, quando eu lhes tiver quebrantado o coração corrompido, que se desviou de mim, e cegado os seus olhos, que se vão corrompendo após os seus ídolos; e terão nojo de si mesmos, por causa das maldades que fizeram em todas as suas abominações"
     Ezequiel 6:9 - KJA

É importante ressaltar que tal pobreza, como dependência de Deus, reconhecida em meio a um estado de extrema necessidade e dor, pode não se originar de mero reconhecimento de falência espiritual, mas consequente da ação divina em lhe apresentar claramente a própria condição de necessitado, em comparação ao sentimento equivocado de segurança que qualquer circunstância favorável que a vida possa trazer. Como em Apocalipse 3:16-17, onde a sensação de riqueza e aparente segurança, é claramente confrontada; estou rico e abastado e não preciso de coisa alguma, e nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu.

Assim, o paradoxo fica evidente. Se a pobreza de espírito está ligada à piedade, a riqueza de espírito e sua consequente arrogância, liga-se ao afastamento voluntário de Deus e de tudo que possa lembrar-lhe a necessidade. O autoconfiante não enxerga, por sua condição, qualquer carência que o leve a depender de Deus e de seu cuidado. Logo, o rico é na verdade miserável, cego e nu, enquanto o pobre, um rico, sendo sua riqueza o socorro e a benevolência de Deus. Quem é como o nosso Deus?

Portanto, seja por contrição espontânea diante da grandeza reconhecida de Deus, seja pela flagrante falência espiritual que lhe derrube da auto suficiência, ou ainda porque viu-se apanhado pela correção de Deus e o reconhece nesse propósito, um coração contrito e quebrantado, um pobre em espírito, terá sempre o amparo do Senhor. O pobre e necessitado de Deus receberá invariavelmente o seu cuidado. O Senhor sempre virá em socorro àquele que suplicante O reconhece como salvador único; socorro bem presente na tribulação.


Dos pobres em espírito é o Reino dos céus, pois são eles que preferencialmente pedem por Deus. São eles que confiam que o Senhor é seu único socorro. Os pobres em espírito não trocam o conforto de Deus por nada, tão mais sedutor possa parecer qualquer outro conforto ou pretensa segurança. Dos que esperam em Deus é o Reino dos céus

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Bem-Aventurados os que se aventuram

Por Jânsen Leiros Jr.

Revisado e ampliado em 03/06/2024

 3Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus. 4Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. 5Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra. 6Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos. 7Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia. 8Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus. 9Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus. 10Bem-aventurados os que têm sido perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. 11Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós, por minha causa. 12Alegrai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos profetas que existiram antes de vós. "

                      Mateus 5:3-12 - TB

 É comum a literatura sapiencial se utilizar da expressão bem-aventurado, significando positivamente o estado em que tal pessoa se encontrará na sequência daquilo que vivencia no instante presente, ou daquilo que pratica naturalmente no exercício de sua vida cotidiana.


 1 Bem-aventurado o varão que não anda segundo o conselho dos ímpios, nem se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores. 2 Antes, tem o seu prazer na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite. 3 Pois será como a árvore plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto na estação própria, e cujas folhas não caem, e tudo quanto fizer prosperará.

4 Não são assim os ímpios; mas são como a moinha que o vento espalha. 5 Pelo que os ímpios não subsistirão no juízo, nem os pecadores na congregação dos justos. 6 Porque o Senhor conhece o caminho dos justos; mas o caminho dos ímpios perecerá."

                      Salmos 1:1-6 - RC

Há diversos outros exemplos bíblicos, cuja lista colocaremos ao final desse artigo. Mas esse texto de Salmos permite conciliar todos os apontamentos e paralelos da expressão, sem que seja necessário utilizarmos outros textos em apoio.

Bem-Aventurados ou felizes, é a tradução mais adequada, no português, para a palavra grega Makarios, utilizada no início de cada uma das sentenças proferidas por Jesus. Makarios, porém, traz implícitos alguns sentidos etimológicos que nosso idioma e cultura não comportam, mas cujas ideias permitem que nossa aventura pelas bem-aventuranças seja mais empolgante e plena de possibilidades.

Não podemos esquecer que o grego é o idioma de uma nação extremamente religiosa e detentora de uma mitológica severa no sentido de atribuir, como expressão do pensamento humano, um significado que transcenda muito além do material. Cada expressão, portanto, sempre busca um contexto mais profundo e preciso, do que o que se apresenta no mundo aparente. Assim, Makarios pode ser entendido como felizes, mas não uma felicidade momentânea ou circunstante.  Antes tende a significar uma felicidade livre do peso do cotidiano, ou livre da vaidade humana, ou ainda livre do domínio das circunstâncias da vida. Uma felicidade, que, portanto, não retrocede porque aponta para a perenidade. Ora, se aponta para o sempre, logo está considerando que quem está livre do peso do cotidiano, bem como do domínio das circunstâncias da vida, só pode, por impossibilidade do contrário, estar morto. Ou seja, a felicidade das bem-aventuranças somente será possível ser vivenciada, quando a morte for uma realidade[1].

Tomando-se por correta a exposição acima, bem-aventurado é uma expressão que pode referir-se tanto a uma condição futura que será atingida em sequência à presente existência, ou a um estado de morte já experimentada em vida, pois no contexto do evangelho, morremos com Cristo. Não estamos mais sujeitos ao domínio das circunstâncias da vida ou das solicitudes de nossa existência cotidiana. Estamos livres das vaidades das coisas, pois conhecendo a Verdade[2], ela nos libertará.

Ora, é por isso mesmo que o salmista chama de bem-aventurado aquele que não se deixa levar pelos seus circunstantes, mas em vez disso se envolve e se dedica ao conhecimento de Deus e de sua justiça. As coisas envolvidas com essa vida já não têm para ele um apelo de urgência ou primazia. São como a palha que o vento carrega, coisa leve e sem importância, rejeitada quando nos ocupamos em reter apenas o que essencialmente importa. Apenas o que é relevante.

É importante notar, no entanto, que tanto o salmista quanto Jesus chama de bem-aventurado, adjetivando o indivíduo que vivencia determinada realidade, e não pelo que ele pratica ou pela forma com que vive. Bem-Aventurado é pelo que lhe será dado, ou permitido por consequência. Ou seja, ninguém é bem-aventurado por ser humilde de espírito, mas sim porque deles é o reino dos céus. Bem como o bem-aventurado do salmista não o é porque medita na lei do Senhor, mas antes porque será como árvore plantada junto ao rio que dará muitos frutos. A bem-aventurança, portanto, adjetiva a condição final e não o estado intermediário que leva àquela, pois este estado intermediário nem sempre será confortável ou interessante como modelo de vida. Ou alguém considera prazeroso, apenas por exemplo, ser perseguido, injustiçado ou caluniado?[3]

De certa forma, as bem-aventuranças como proferidas por Jesus, e aí diferentemente do salmista, elenca não uma lista de atitudes que seus discípulos devem exercitar para um determinado objetivo, mas sim características percebidas naqueles que já não estão sob o domínio do peso do cotidiano, mas que estarão mortos com ele, Jesus[4]; os humildes de espírito, os chorosos, os mansos, os famintos e sedentos por justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os pacificadores, os perseguidos, os caluniados e também os injustiçados.

É importante ressaltar, como já dissemos anteriormente, que o Sermão da Montanha é o primeiro discurso de desconstrução do modelo de vida elaborado pelos judeus, que tinham na prosperidade social e financeira sua meta primordial, não muito distantes do orgulho cultural, religioso e nacional. Tudo o que fosse socialmente entendido como desfavorável, jamais poderia ser aceito como benéfico ou procedente, capaz de traduzir no tempo uma vantagem ou recompensa positiva vindoura[5]. E é exatamente por isso que Jesus inicia o discurso com as bem-aventuranças. No seu Reino, tudo seria diferente e porque não dizer, o contrário. Vida, recompensa da morte[6].

As bem-aventuranças, portanto, apontam para o restante do sermão. Elas o introduzem, criando a sustentação para o conceito de aprofundamento da justiça, que deve exceder à formalidade legalista e aparente dos escribas e fariseus. Só sendo manso é possível entregar a capa ao que a toma de você, e ainda lhe oferecer também a túnica. Bem como oferecer uma face quando a outra já está vermelha e ardendo por uma agressão, só é possível a quem é misericordioso e humilde de espírito. Só sendo um pacificador, é possível calar diante de calúnias e injustiças, que por si só já legitimariam qualquer reação loquaz, agressiva ou mesmo de defesa da honra.

Bem-Aventurados somos, portanto, por vivermos a melhor e mais completa de todas as aventuras. A aventura de termos corações transformados. De vivermos mortos, porém cheios de vida abundante. De termos por promessa uma existência repleta de tudo aquilo que hoje nos é carência e escassez. Usando o que não nos pertence e andando por terras estrangeiras em que somos peregrinos[7].

Vivendo em marcha, o aqui e agora, vivemos na esperança do ali e depois. Somos convictos do que não vemos, esperando contra a esperança, pois nosso é o Reino dos Céus. Em Deus somos sempre, vivo ou mortos, bem-aventurados.



[1] Para uma avaliação mais específica sobre o que cada um desses estudiosos e referências afirma em relação às suas declarações, fornecemos um resumo baseado em seus escritos sobre temas relacionados. Abaixo, um detalhamento mais específico de como cada um deles pode apoiar ou contextualizar suas afirmações:

1.       William Barclay:

o    Barclay, em sua série The Daily Study Bible, especialmente nos volumes sobre Mateus, explora o significado de "makarios". Ele destaca que a palavra traduzida como "bem-aventurado" ou "feliz" no Sermão da Montanha implica uma felicidade profunda e duradoura, que transcende as circunstâncias materiais e temporais. Barclay enfatiza que esta felicidade está enraizada em um relacionamento com Deus e na realização do propósito divino.

2.       Joachim Jeremias:

o    Jeremias, em The Sermon on the Mount, discute o uso das bem-aventuranças no contexto da pregação de Jesus. Ele aponta que "makarios" se refere a uma bem-aventurança que vai além da mera felicidade terrena, indicando um estado de graça e bênção divina que perdura, independentemente das adversidades da vida.

3.       Kittel, Gerhard (editor):

o    No Theological Dictionary of the New Testament (TDNT), o termo "makarios" é analisado profundamente. Kittel e outros contribuintes argumentam que "makarios" denota uma condição de bem-estar que é mais espiritual do que material, sugerindo uma felicidade associada à proximidade com Deus e à participação no reino dos céus. Este entendimento apoia sua interpretação de uma felicidade que transcende as circunstâncias da vida.

4.       N.T. Wright:

o    Em Jesus and the Victory of God, Wright discute as bem-aventuranças como parte do anúncio do Reino de Deus por Jesus. Ele argumenta que essas declarações não se referem apenas a um futuro distante, mas a uma realidade presente e transformadora. Wright sugere que a felicidade mencionada por Jesus é uma participação na nova ordem de Deus, livre das pressões e vaidades do mundo presente.

5.       David E. Aune:

o    No Westminster Dictionary of New Testament and Early Christian Literature and Rhetoric, Aune discute a profundidade das palavras gregas no Novo Testamento, incluindo "makarios". Ele destaca que o termo implica uma bênção que é mais do que uma sensação momentânea, mas uma condição contínua e espiritual de bem-estar.

6.       Martin Hengel:

o    Em Judaism and Hellenism, Hengel examina a influência da cultura grega na Palestina do primeiro século. Ele argumenta que muitos termos gregos, incluindo "makarios", foram adotados com significados que transcendem o material, refletindo uma visão espiritual e filosófica da vida que é consistente com a sua análise da bem-aventurança.

7.       Bauer, Walter:

o    A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature (BDAG) é uma referência padrão que oferece definições detalhadas de "makarios". Bauer destaca que o termo é frequentemente usado para descrever um estado abençoado e feliz que é independente das circunstâncias externas, reforçando sua argumentação sobre a felicidade transcendente.

8.       Craig S. Keener:

o    Em A Commentary on the Gospel of Matthew, Keener discute como as bem-aventuranças de Jesus desafiam as noções contemporâneas de felicidade e sucesso. Ele enfatiza que a felicidade descrita por Jesus é espiritual e enraizada em uma relação com Deus, o que apoia sua interpretação de "makarios" como uma felicidade que transcende as pressões do cotidiano.

9.       Eugene Peterson:

o    Na paráfrase The Message, Peterson tenta capturar o espírito das bem-aventuranças em linguagem contemporânea, enfatizando a natureza profunda e duradoura da felicidade mencionada por Jesus. Ele sugere que esta bem-aventurança é uma condição de estar em harmonia com os propósitos divinos, livre das preocupações mundanas.

10.    Jonathan T. Pennington:

o    Em The Sermon on the Mount and Human Flourishing: A Theological Commentary, Pennington argumenta que as bem-aventuranças descrevem um estado de bem-aventurança que é mais do que uma sensação passageira de felicidade. Ele vê "makarios" como uma condição abençoada e realizada que vem da vivência dos valores do Reino de Deus.

[2]  João 8:32

[3]  Mateus 5:10 e 11

[4]  Romanos 8:16-17; Mateus 16:24-25

[5] Para o trecho que analisa o Sermão da Montanha como uma desconstrução do modelo de vida judaico centrado na prosperidade social e financeira, e o contraste com as bem-aventuranças, algumas referências literárias e de especialistas podem ser particularmente úteis.

1.       John Stott:

o    Em The Message of the Sermon on the Mount, Stott argumenta que o Sermão da Montanha representa uma inversão radical dos valores sociais e religiosos da época. Ele destaca que Jesus desafia a busca pela prosperidade material e o orgulho nacionalista, propondo um reino baseado em valores espirituais e humildade.

2.       N.T. Wright:

o    Wright, em Jesus and the Victory of God, discute como o ministério de Jesus, incluindo o Sermão da Montanha, confronta e subverte as expectativas messiânicas e sociais dos judeus do primeiro século. Ele sugere que Jesus propõe um reino que valoriza os marginalizados e subverte as estruturas de poder e riqueza.

3.       Scot McKnight:

o    Em The Sermon on the Mount, McKnight destaca que o discurso de Jesus contraria diretamente as aspirações dos judeus por prosperidade e poder. Ele argumenta que Jesus oferece uma visão de bem-aventurança que valoriza a justiça, a misericórdia e a humildade, em oposição à riqueza e status social.

4.       David Flusser:

o    Flusser, em Jesus, apresenta Jesus como um reformador radical que desafia as normas sociais e religiosas de seu tempo. Ele argumenta que o Sermão da Montanha é uma crítica direta à ênfase judaica na prosperidade material e na pureza ritual, promovendo um reino onde os pobres e os humildes são bem-aventurados.

5.       Dale C. Allison Jr.:

o    Em The Sermon on the Mount: Inspiring the Moral Imagination, Allison sugere que o Sermão da Montanha visa reconfigurar a compreensão dos discípulos sobre o que significa ser abençoado. Ele argumenta que Jesus redefine a prosperidade e a bênção em termos espirituais, em vez de materiais.

6.       Richard Bauckham:

o    Bauckham, em Jesus and the Eyewitnesses, discute como Jesus frequentemente desafia as expectativas culturais e religiosas de seu tempo. Ele sugere que o Sermão da Montanha é um exemplo claro de como Jesus subverte os valores contemporâneos, propondo uma visão de bem-aventurança baseada na justiça e na misericórdia.

7.       Craig S. Keener:

o    Keener, em A Commentary on the Gospel of Matthew, argumenta que as bem-aventuranças representam uma inversão dos valores comuns, incluindo a prosperidade material e o status social. Ele sugere que Jesus promove uma ética de humildade e serviço, contrastando com as aspirações de riqueza e poder.

8.       E.P. Sanders:

o    Em Jesus and Judaism, Sanders examina como Jesus desafia as expectativas messiânicas e sociais dos judeus de sua época. Ele sugere que o Sermão da Montanha oferece uma visão alternativa de prosperidade e bênção, centrada em valores espirituais e éticos.

9.       Amy-Jill Levine:

o    Levine, em The Misunderstood Jew, discute como Jesus frequentemente confronta as normas sociais e religiosas de seu tempo. Ela sugere que o Sermão da Montanha redefine a bem-aventurança e a prosperidade em termos de justiça e compaixão, em vez de riqueza e status.

10.    Jonathan T. Pennington:

o    Em The Sermon on the Mount and Human Flourishing, Pennington argumenta que Jesus, no Sermão da Montanha, redefine o que significa prosperar. Ele sugere que as bem-aventuranças apontam para um tipo de bem-aventurança que é espiritual e ética, contrastando com a prosperidade material e social.

[6] O trecho "Vida, recompensa da morte" sugere uma inversão dos valores tradicionais, onde a verdadeira vida é encontrada através da morte, particularmente a morte espiritual e a auto-negação. Alguns teólogos compartilham desse conceito, como abaixo:

1.       Dietrich Bonhoeffer:

o    Em The Cost of Discipleship, Bonhoeffer argumenta que seguir Cristo implica em "morrer" para o eu e para os desejos mundanos. Ele diz que a verdadeira vida em Cristo é alcançada através da renúncia e do sofrimento, o que contrasta com a busca por conforto e prosperidade material.

2.       N.T. Wright:

o    Em Surprised by Hope, Wright discute a teologia da ressurreição e como a vida eterna é uma realidade que transcende a morte física. Ele argumenta que a verdadeira vida, conforme ensinada por Jesus, é encontrada na ressurreição e na nova criação, implicando que a morte não é o fim, mas o começo de uma existência plena e verdadeira.

3.       Paul Tillich:

o    Em The Courage to Be, Tillich explora a ideia de que a verdadeira vida exige a coragem de enfrentar a morte, tanto literal quanto figurativamente. Ele sugere que a auto-negação e a aceitação da própria finitude são necessárias para experimentar a plenitude da vida.

4.       John Stott:

o    Em The Cross of Christ, Stott explica que a vida cristã autêntica é caracterizada pela crucificação do eu. Ele argumenta que a morte de Jesus na cruz é o paradigma para a vida do cristão, onde a verdadeira vida é vivida através da morte para o pecado e a auto-suficiência.

5.       C.S. Lewis:

o    Em Mere Christianity, Lewis discute a ideia de "morrer" para o eu como um caminho para a verdadeira vida. Ele explica que a auto-entrega e a submissão a Deus são paradoxalmente a forma de encontrar a verdadeira identidade e vida.

6.       Richard Bauckham:

o    Em Jesus and the God of Israel, Bauckham analisa a teologia da crucificação e ressurreição de Jesus, destacando como a morte de Jesus é o meio pelo qual a verdadeira vida é oferecida aos seus seguidores. Ele sugere que a morte de Cristo inaugura uma nova realidade de vida eterna para os crentes.

7.       Henri Nouwen:

o    Em The Return of the Prodigal Son, Nouwen fala sobre a necessidade de morrer para o eu para experimentar a reconciliação e a vida abundante em Deus. Ele enfatiza a transformação espiritual que ocorre quando se renuncia às próprias vontades em favor da vontade de Deus.

8.       Jürgen Moltmann:

o    Em Theology of Hope, Moltmann explora a relação entre morte e esperança. Ele argumenta que a ressurreição de Cristo oferece uma nova vida que só pode ser compreendida à luz da morte. A morte é vista como um portal para a verdadeira vida, conforme prometido no evangelho.

9.       Michael Green:

o    Em The Meaning of Salvation, Green discute como a salvação cristã envolve a morte para o pecado e a velha natureza, conduzindo a uma nova vida em Cristo. Ele argumenta que a vida cristã é marcada por essa contínua morte e ressurreição espiritual.

10.    Dallas Willard:

o    Em The Divine Conspiracy, Willard fala sobre a necessidade de morrer para si mesmo a fim de viver a vida do Reino de Deus. Ele sugere que a verdadeira vida é encontrada na entrega total a Deus, o que implica uma morte espiritual do ego e das ambições mundanas.

[7]  1 Pedro 2:11